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Derretimento de geleiras está, até agora, favorecendo a irrigação em áreas secas, mas isso não deve  permanecer por muitas décadas. | Tomas Munita/NYT
Derretimento de geleiras está, até agora, favorecendo a irrigação em áreas secas, mas isso não deve permanecer por muitas décadas.| Foto: Tomas Munita/NYT

O deserto está florindo agora: os mirtilos chegam a ter o tamanho de bolas de pingue-pongue;,os campos de aspargos atravessam dunas e desaparecem no horizonte. O produto do deserto é embalado e enviado para lugares como Dinamarca e Delaware, a eletricidade e a água chegaram às aldeias que há tempos não tinham nada disso. Os agricultores se mudaram para cá vindos das montanhas, buscando um futuro nessas terras irrigadas.

Tudo isso pode soar como um plano de desenvolvimento perfeito, exceto por um detalhe: a razão para que tanta água chegue a este deserto é que o gelo no topo das montanhas está derretendo.

E a bonança pode não durar muito mais tempo.

“Se a água desaparecer, teríamos que voltar a viver como antes, quando a terra estava nua e as pessoas tinham fome”, afirma Miguel Beltrán, fazendeiro de 62 anos que se preocupa com o que acontecerá quando os níveis de água caírem.

Nesta parte do Peru, a mudança climática está sendo uma bênção, mas logo poderá se tornar uma maldição. Nas últimas décadas, o derretimento do gelo dos Andes gerou uma corrida em busca da água, contribuindo para a irrigação e o cultivo de mais de 40 mil hectares desde a década de 1980.

No entanto, o benefício é temporário. O fluxo de água já está declinando e a geleira, desaparecendo; os cientistas estimam que, em 2050, grande parte dessa massa de gelo já terá derretido.

No século 20, enormes projetos de desenvolvimento de muitos governos, da Austrália até a África, desviaram água para a terra árida. Grande parte do sul da Califórnia era uma área desértica até que canais chegaram com a irrigação, desencadeando uma enxurrada de especulação imobiliária e crescimento. Agora, a mudança climática ameaça alguns desses feitos ambiciosos, reduzindo lagos, diminuindo aquíferos e derretendo geleiras que alimentam plantações.

No Peru, o governo irrigou o deserto e o transformou em terras produtivas por meio de um projeto de US$ 825 milhões.Tomas Munita/NYT

No Peru, o governo irrigou o deserto e o transformou em terras produtivas por meio de um projeto de US$ 825 milhões que, em poucas décadas, poderá estar seriamente ameaçado.

“Estamos falando sobre o desaparecimento de montanhas de água congelada que sustentam vastas populações. Essa é a grande questão relacionada à mudança climática agora “, diz Jeffrey Bury, professor da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, que passou anos estudando os efeitos do derretimento do gelo na agricultura peruana.

O clima em mudança assombra o Peru há tempos. Muitos arqueólogos afirmam que a civilização moche construiu cidades nos mesmos desertos, mas desapareceu há mais de um milênio, depois que o Oceano Pacífico se aqueceu, matando peixes e causando enchentes.

Agora, a diminuição da água é a ameaça. Enquanto mais da metade do Peru está localizada na Bacia Amazônica, poucos povos locais se estabeleceram lá. A maioria vive na seca costa do litoral norte, onde a chuva não cai por causa da Cordilheira dos Andes. A região inclui a capital, Lima, e 60% dos peruanos, e conta com apenas 2% do abastecimento de água do país.

As geleiras são a fonte hídrica de grande parte da costa durante a estação seca do Peru, que se estende de maio a setembro, mas a cobertura de gelo da Cordillera Blanca, há muito tempo fonte de abastecimento para o projeto de irrigação Chavimochic, diminuiu 40% desde 1970 e está desaparecendo em um ritmo rápido, nunca visto anteriormente. Ela atualmente encolhe cerca de 9 metros por ano, dizem os cientistas.

Camponeses ao longo da bacia hidrográfica de 160 km, que abre caminho por entre picos cobertos de neve e chega até as dunas do deserto, dizem que já estão sentindo os efeitos da mudança.

Segundo cientistas, a retração da cobertura de gelo expôs extensões de metais pesados, como chumbo e cádmio, que estavam enterrados sob as geleiras há milhares de anos e que agora estão penetrando o lençol freático, deixando a água vermelha e contaminada, matando o gado e as colheitas.

As temperaturas nesta área aumentaram consideravelmente, causando estranhas mudanças nos ciclos de colheita, dizem agricultores. Na última década, o milho, que desde tempos pré-coloniais era colhido apenas uma vez por ano nas montanhas, começou a ter dois ciclos, às vezes três.

Seria um golpe de sorte, disseram os agricultores como Francisco Castillo, se não fosse por todas as pragas que agora prosperam no clima quente. Para Castillo, que planta milho e arroz perto do Rio Santa em Chimbote, uma delas se tornou o flagelo para ele e seus vizinhos agricultores, pois, de repente começou a devorar suas colheitas no início dos anos 2000.

Depois, em 2016, vieram os ratos.

“Nunca tivemos ratos aqui antes”, ressalta Castillo.

Para Justiniano Daga, agricultor de 72 anos, a ruína de suas plantações de algodão veio quando formigas vermelhas destruíram os brotos. Em 2017, decidiu plantar cana e levar parte de sua produção para maiores altitudes, onde faz mais frio.

Porém, as pragas vão chegar lá também, conforme a temperatura for subindo, segundo Daga.

O projeto Chavimochic, que fica ao norte do local onde o Rio Santa deságua no Oceano Pacífico, é uma joia da agricultura e da engenharia civil peruana.

O governo pretendia estimular a agricultura em escala industrial nos desertos do norte de Peru, através de um amplo sistema de eclusas e canais. Os defensores da ideia prometiam lucros através da exportação para mercados na América do Norte, Ásia e Europa, onde a estação das frutas é invertida.

A primeira fase do projeto começou em 1985, com um canal de 80 quilômetros irrigando um vale e uma grande hidrelétrica fornecendo eletricidade para os moradores. No início dos anos 1990, o Peru começou uma segunda fase, que irrigou mais dois vales e criou uma usina de tratamento de água que abastecia 70% da população circundante.

Ao todo, mais de 40,4 mil hectares de deserto estavam sendo cultivados.

“Anos atrás, se eu lhe desse um pedaço de terra aqui, você não saberia o que fazer com ele; hoje, pensaria em adquirir mais de um lote”, frisa Osvaldo Talavera, porta-voz do distrito de água.

Porém, na cabeceira do Rio Santa, na cidade montanhosa de Huaraz, o climatologista peruano César Portocarrero vê problemas futuros para quem mora ao longo do rio.

A temperatura das geleiras aumentou de 0,5 a 0,8° C da década de 1970 ao início de 2000, fazendo com que o gelo da Cordilheira Blanca dobrasse o ritmo de derretimento nesse período. Várias vezes por ano, Portocarrero e outros cientistas fazem caminhadas pelos vales glaciais, onde já encontraram seções inteiras da calota de gelo que já desapareceu. Uma área descongelada expôs vestígios de pegadas de dinossauros.

Um estudo de 2012 feito por cientistas americanos e canadenses mostrou que o fluxo de água no Rio Santa estava caindo, e que, com as taxas atuais, o rio pode perder 30% de seu volume durante a estação seca do Peru. “A cada ano, há menos água; na verdade, ela diminui a um ritmo diário”, completa Portocarrero.

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