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“Se não fosse pelo dinheiro que o governo está oferecendo, não estaríamos onde estamos”, disse Austin Eatts. | MATTHEW ABBOTT/NYT
“Se não fosse pelo dinheiro que o governo está oferecendo, não estaríamos onde estamos”, disse Austin Eatts.| Foto: MATTHEW ABBOTT/NYT

Um pássaro gigante meio cinza, meio rosado, sobrevoa os viajantes que entram em Kimba, uma cidade rural isolada em um vasto cinturão agrícola no sul da Austrália.

A velha estátua de oito metros, de uma espécie local de cacatua chamada galah, marca um ponto aproximadamente na metade do caminho entre as costas leste e oeste do gigante da Oceania. Em frente à Halfway Across Australia Gem Shop, era a única coisa por que Kimba era famosa até cerca de um ano atrás.

Tudo começou quando duas famílias de agricultores daqui ofereceram suas propriedades ao Estado como possíveis locais de armazenamento de resíduos nucleares.

Agora, enquanto o governo federal considera a construção do depósito em uma dessas duas fazendas em Kimba, a comunidade de cerca de 650 habitantes encontra-se dividida e revoltada. A perspectiva de empregos e subsídios que o projeto traria gerou o antagonismo entre aqueles que querem preservar o estilo de vida rural australiano e os que dizem que os dias de glória da agricultura acabaram.

“As pessoas dizem que a cidade é próspera, mas, na verdade, todos estão penando para se manter. Seria algo que não depende da agricultura, e é disso que precisamos”, disse Annie Clements, de 70 e poucos anos e membro do grupo Working for Kimba’s Future, que apoia o depósito nuclear.

Localizada perto do centro de uma das regiões de cultivo de trigo mais produtivas do mundo, a pequena cidade agrícola na Península de Eyre, no Sul da Austrália, ainda possui inúmeras casas de pedra da época em que foi estabelecida, um século atrás. A estrada de asfalto que sai daqui logo se transforma em uma via de terra batida, e as casas de grandes propriedades produtoras do grão se espalham por quilômetros.

Apesar das distâncias, os moradores dizem que Kimba sempre teve um forte senso de comunidade, pelo menos até o depósito nuclear ser proposto. Alguns disseram que o fascínio de milhões de dólares em bônus e subsídios que o governo estava oferecendo à comunidade havia feito muita gente se esquecer dos riscos.

Eatts, que é de uma das famílias originais locais, é proprietário das terras vizinhas de Michelle e Brett Rayner, que ofereceram sua fazenda como possível local para o lixo nuclear.MATTHEW ABBOTT/NYT

“Se não fosse pelo dinheiro que o governo está oferecendo, não estaríamos onde estamos”, disse Austin Eatts, de 89 anos, na grande fazenda de trigo ao lado da cidade onde viveu toda sua vida.

Eatts, que é de uma das famílias originais locais, é proprietário das terras vizinhas de Michelle e Brett Rayner, que ofereceram sua fazenda como possível local para o lixo nuclear.

“Uso os mesmos encanamentos que eles; não quero compartilhar um depósito de resíduos nucleares”, disse Eatts. Olhando para uma pilha de documentos sobre as instalações que havia coletado ao longo de cerca de um ano, ele disse que estava preocupado com o efeito dos resíduos radioativos para as futuras gerações.

Na Austrália, a batalha pública do armazenamento da pilha de lixo nuclear médico, cada vez maior – incluindo resíduos com níveis baixos e médios de contaminação como recipientes plásticos e roupas de proteção de pesquisa nuclear – já dura anos, e vários locais foram aventados e descartados. Porém, agora que o governo central está de olho nesta pequena comunidade como um dos dois possíveis depósitos, o medo e a indignação sobre o efeito que isso pode causar às terras agrícolas de Kimba vão crescendo.

A cidade, que hoje é assunto nas notícias nacionais, está tão polarizada sobre o debate que famílias que foram amigas durante várias gerações agora desviam o olhar quando se cruzam na rua. Há boicote ao comércio, dizem os habitantes. Algumas pessoas chegaram até mesmo a se mudar daqui por causa disso.

Apesar da situação, os habitantes têm uma coisa em comum: querem o melhor para sua cidade. Só não concordam com o que seria isso.

Clements, citando o número decrescente de crianças em idade escolar e o fato de que Kimba logo perderá seu único médico, afirmou estar preocupada com o encolhimento da cidade e do vigor da economia agrícola.

“A situação está difícil”, disse ela, observando as dezenas de casas vazias nas ruas.

A perspectiva de empregos e subsídios que o projeto traria gerou o antagonismo entre aqueles que querem preservar o estilo de vida rural australiano e os que dizem que os dias de glória da agricultura acabaram.MATTHEW ABBOTT/NYT

As fazendas sendo consideradas para o local proposto a 16 e 24 quilômetros do centro. Todo ano, a quantidade de resíduos de baixo nível radioativo gerada na Austrália caberia em um contêiner, de acordo com números do governo, e a de nível médio ocuparia uma caçamba de lixo. O país não tem usinas nucleares.

Calcula-se que o depósito criaria mais de uma dúzia de postos de trabalho, por isso os apoiadores o veem como uma alternativa necessária à agricultura para a economia local.

Aqueles que são contra a instalação, como Peter Woolford, agricultor de Kimba de terceira geração que participa do grupo No Radioactive Waste on Agricultural Land in Kimba or South Australia, dizem que ela vai afetar o preço da produção e das terras. E também temem que cidade fique para sempre ligada à ideia de lixo nuclear.

A radiação e os resíduos radioativos não são novidade no estado do Sul da Austrália, onde se encontra Kimba. A maioria das minas de urânio do país está aqui, assim como a área remota, conhecida como Maralinga, onde os britânicos testaram armas nucleares na década de 1950.

Com o processo de seleção do local em fase final, o governo abriu um escritório no centro de Kimba para melhorar a comunicação com a comunidade. Funcionários federais percorrem as principais ruas da cidade e são vistos frequentemente entre os habitantes locais, respondendo a perguntas e tentando diminuir receios.

Para acabar com a divisão por vezes amarga, alguns políticos tentam convencer o governo a encontrar outro local.

Os Rayners, que ofereceram terras em sua fazenda para o depósito, disseram que estavam convencidos da segurança da instalação, e que haviam tomado essa decisão para incentivar o crescimento de Kimba.

“O principal objetivo são os benefícios, pois esta será administrada pelo governo federal”, disse Michelle Rayner. Ela acredita que um afluxo de funcionários públicos traria melhorias ao hospital, uma boa conexão à internet e até melhores serviços de rádio e TV.

“A cidade é muito isolada”, afirmou o marido, que cultiva a propriedade desde 2000.

O casal disse não estar arrependido de sua decisão, mas o que aconteceu à comunidade os incomoda.

Michelle Rayner acrescentou: “Acho que a palavra -nuclear- assusta muita gente. Eles nem sabem por que não querem o depósito; apenas não querem”.

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