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Pinguim, Black Tie, Sheriff, Bonnie, Red Hot... Estes nomes não soam familiar para você? É, provavelmente não, mas se você mora em Curitiba e já passeou pela região do Parque Barigui nos fins de semana ou frequentou uma exposição de carros antigos certamente cruzou com os donos dos apelidos. 

Eles identificam carros do estilo hot rod! Isso também não ajudou muito? São aqueles veículos clássicos das décadas de 1920 a 60, como FordinhosChevroletsDodges, achados em estado de sucata ou em pedaços no ferro velho, que acabam restaurados, ganhando mecânica moderna e muita criatividade na pintura. Tudo neles é robusto: tamanho das rodas e pneus, motores expostos, grade frontal, rebaixados, e por aí vai.

Pois saiba que Curitiba é a capital brasileira do culto à cultura hot rod ('biela quente’, numa tradução livre). Das quase 7 mil unidades prontas ou em fase de construção no país, pelo menos 1 mil exemplares estão em garagens e oficinas especializadas da capital paranaense.

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Os números podem ser ainda maiores considerando as réplicas em fibra de vidro, que vem encontrando mais adeptos a cada dia. “Estamos crescendo e os fabricantes de carrocerias de fibra de vidro prometem fornecer a matéria prima básica necessária para que o movimento se perpetue", destaca Manoel Bandeira, 56 anos, sendo 37 deles como um rodder.

Ser um rodder é gostar de criar, inventar e melhorar o que já existe. Pegar um carro de 70, 80 anos, que está abandonado e enferrujado em um canto qualquer, e deixá-lo em condições de rodar, viajar, curtir com ele. Ser um rodder é, acima de tudo, amar a vida, é procurar transformar o mundo em um lugar melhor, mais colorido, mais romântico.

Manoel Bandeira, colecionador e ex-presidente do Curitiba Roadsters.

O colecionador é um dos fundadores do Curitiba Roadsters, clube que surgiu em 1994 para organizar e difundir a cultura que fervilhava na capital, por meio de exposições de carros, desfile em datas comemorativas e eventos beneficentes.

“O clube fez história em uma época onde carros modificados, principalmente os hot rods que recebiam motores muito mais potentes, eram considerados foras da lei. Mostramos de uma maneira organizada que tudo poderia ser diferente”, ressalta o entusiasta, com a credencial de quem já teve 58 carros antigos, dentre eles uma picape Ford 1940, um Furgão 1934 e um Chevrolet 1956, todos transformados em hot.

O clube paranaense é um dos mais antigos do gênero no país, se não o mais, numa ‘briguinha’ por esse título com o BH Hot, de Minas Gerais. Em 2011 houve um cisão que fez surgir também o Confraria do Hot. “Mesmo separados, ambos continuam a fazer crescer a paixão por hot rods em nossa capital”, salienta o Bandeira, que já foi presidente do Curitiba Roadsters.

O rei dos hots curitibanos

Outro que contribuiu, e muito, pela evolução desta cultura em Curitiba é Sérgio Liebel, proprietário da Hot & Rusty (Quente & Enferrujado), especializada no gênero. Da sua oficina saíram projetos que ficaram famosos pelo país afora, principalmente por adotar pinturas mais ousadas, com muito flame e cores fortes.

Os apelidos que abrem essa matéria são de customizações que nasceram da cabeça de Liebel. “Sou da segunda geração de cultuadores do estilo hot em Curitiba, de uma turma que decidiu comprar a ideia dos pioneiros do estilo na capital. Era um movimento que não acontecia no restante do país, só aqui”, relembra o ex-piloto de aviões comerciais.

Oficina Hot & Rusty é uma das mais conceituadas no país em customização e restauração de hot rod.

Há 33 anos no meio antigomobilista, Liebel costuma dizer que curte esse lado ‘ferrugem’ desde criança. “Se tivesse que escolher entre um calhambeque e um carro novo, iria optar pelo calhambeque sempre”, afirma, sem pestanejar. 

Ele conta que o hot desperta um carisma nas pessoas pelo visual simpático, e ao mesmo tempo exótico, e também fascina as crianças, que logo o associa às miniaturas da Hot Wheels

O tempo para um hot rod ficar pronto varia muito, dependendo da complexidade e padrão de equipamento. Pode girar entre 1 ano e meio a 5 anos. Já os valores começam em R$ 50 mil e podem ultrapassar 300 mil. 

Sérgio Liebel, colecionador e proprietário da oficina Hot & Rusty

A Hot & Rusty já construiu mais de 30 máquinas, muitas delas com peças de carroceria, chassis e suspensão criadas dentro da própria oficina. O maquinário usado por ele e sua equipe é capaz de reproduzir componentes de alta qualidade, superiores até a peças originais. 

Graças a Hot & Rusty e a meia dúzia de outras empresas do segmento (como Bonneville Custom Garage e Totty’s Hot Toys), Curitiba virou referência no país em perfeição nos detalhes de construção de um hot. Segundo Liebel, em outras praças não há um respeito quanto à fidelidade na essência da cultura hot, nascida nos Estados Unidos na década de 1950. 

Em outros estados há muita roda ‘tunada’, que não pertence ao estilo, exemplifica o customizador, com a experiência de quem fez inúmeras viagens aos EUA em busca de aperfeiçoamento. Por lá, conheceu renomados artistas da construção de hot rods no mundo, entre os quais Billy Gibbons, rodder e vocalista da banda ZZ Top.

Ele conta que hoje é mais fácil de montar o seu próprio modelo: há uma quantidade maior de peças no mercado, de carrocerias de fibra de vidro, que imitam as originais, e de profissionais especializados nesse ofício.

Os proprietários podem importar motores de carrões como CamaroMustang, mas isso não impede que alguns rodders coloquem sob o capô motorizações de modelos fáceis de se encontrar por aqui, como do Opala ou do Omega. Além disso, os amantes do gênero têm a possibilidade de adquirir diversas réplicas das peças originais no mercado brasileiro.

O mago dos flames

Gustavo ‘Guga’ Telles e a pintura flame em aerografia, com labaredas que  ‘dançam seguindo o movimento do carro’.
Arquivo pessoal

A cereja do bolo de alguns do projetos de Sergio Liebel tem a assinatura do artista Gustavo Telles, o Guga. Ele é o responsável pelos desenhos em aerografia aplicadas no carros, especialmente os flames (labaredas de fogo), marca registrada dos hots. 

A parceria da dupla está mais distante atualmente porque Guga se afastou do universo hot para tocar outros projetos. Mas ele ainda lembra com carinho dos primeiros passos neste segmento que fez o seu estúdio G Airbrush virar um dos mais renomados no país no estilo flame.

“Eu e o Sérgio fomos ousados. Fazíamos coisas padrão americano, que quebraram aquela mesmice de pintura preta fosca com motor aparecendo", recorda. 

Se por um lado trouxe uma nova aparência às criações nacionais, do outro encareceu os projetos, fazendo muitos adeptos a não investirem em trabalhos ousados, um dos motivos que o afastaram do estilo.

Curitiba deu sorte de ter um cara como o Liebel, que ousou em muitas criações e montou uma equipe que tinha o mesmo pensamento. Muitos dos carros [feitos nesta parceria] são únicos e preservados até hoje, espalhados pelo Brasil.

Gustavo ‘Guga’ Telles, proprietário da G Airbrush.

A técnica em aerografia que reproduzia labaredas de fogo na carroceria dos carros foi apresentada a Guga por Liebel por meio de conversas e revistas especializadas trazidas dos EUA. “O flame é uma pintura tradicional neste tipo de carro, mas não existia em Curitiba pessoas dispostas a fazer algo diferente. Então, decidimos ousar. Graças a esses modelos, Curitiba ainda é reconhecida como a cidade onde tem os hots mais bonitos e diferenciados”, pontua.

Ele cita uma frase de Liebel para resumir a força que o flame dá ao hot. “O flame tem que dançar. Aquele fogo, mesmo estilizado, precisa mostrar que está em movimento junto com o carro”, resume.

Pioneiros na capital

O primeiro movimento forte em Curitiba de paixão pelo hot rod começou no início da década de 1980. O mecânico Luiz Martins Filho, o Zizo, hoje com 66 anos, começou a idealizar projetos em sua oficina, mesmo com o pouco ou quase nenhum acesso que tinha às informações propagadas nos EUA.

“Eu nunca saí do Brasil, tudo que criei veio da minha imaginação e da inspiração das motos estilo chopper que construía antes dos hots”, revela. O primeiro exemplar foi em cima de um Fordinho 1928, mas depois vieram inúmeras picapes e hoje seus trabalhos se resumem à personalização de caminhões, alguns até com pegada hot rod. 

Sebastião Geronasso entre o seu o Ford Roadster 1934 (à esquerda) e o Ford Coupe 1934 de Luiz Martins, o Zizo. 
Arquivode família.

Zizo conta que levava de 10 a 15 dias para fazer a mecânica de um Ford ou Chevrolet, deixando a parte da lataria e acabamento para o cliente finalizar em outra oficina. “Eu comprava Opala, Maverick, Dodge, Galaxie usados, mas que rodava normalmente, e desmontava-os para retirar motor e suspensão, por exemplo. Por isso, eu era conhecido como o assassino de carros", diz, sem conter a gargalhada.    

Zizo passeando com Ford Coupe 1934 pelas ruas de Curitiba.
Arquivo de família.

Zizo foi mentor de outras figuras importantes na primeira fase do hot em Curitiba, como Sebastião Geronasso  (já falecido) e Rafael Glaser. Este grupo de precursores tinha ainda Sérgio Reinaldino, Serge Saguaru, Celso Viana (já falecido), Celso José Cordeiro e Nilmar ‘Castilho’ Scuciatto. 

Também na década de 1980 vieram os entusiastas Manoel Bandeira, Bernardo Amaral Wolf Neto, o Benny, Roberto Devolio, Moacyr Boscardin, Renato Benoni, Aurélio Backo e Sérgio Liebel.

Ford Coupé 1934 de Luiz Martins Filho, o Zizo.
Arquivo de família.

A história do culto nos EUA

Surgidos a partir da década de 1950 nos Estados Unidos, os carrões customizados foram inicialmente uma alternativa aos jovens da época com pouco dinheiro no bolso para ter os seus próprios veículos. Assim, eles passaram a incrementar modelos antigos, como o clássico Ford 1932, e dar a eles mais potência e estilo. Um exemplo disso era a retirada do capô, que deixava o motor aparente e dava mais leveza para as pistas.

Mas de lá para cá, a carcaça de modelos de outras décadas também passou a ser cobiçada pelos rodders – como são conhecidos os amantes do gênero –, enquanto os motores preferidos continuaram sendo os potentes V8. Ao contrário dos EUA, porém, a cultura dos roadsters no Brasil ganhou impulso somente há 25 anos.

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