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A vingança da Família Buscapé
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“A América é uma Alemanha cercada por duzentos milhões de idiotas”, disse o comediante Bill Maher, socialista assumido, numa entrevista. Ele é uma das vozes mais contundentes e influentes da esquerda americana, chamada de “liberal” e “progressista” desde os tempos de Franklin Roosevelt.

Em apenas uma frase, Bill Maher resumiu todo preconceito ideológico da elite americana das grandes cidades com os habitantes do flyover country, a parte do país que só conhece da janela do avião quando está voando de uma costa para outra. Para muitas celebridades, artistas, herdeiros, bilionários do mercado financeiro, intelectuais das universidades mais prestigiadas e esnobes em geral, há um país “europeu” incrustado numa nação de caipiras ignorantes, belicosos, xenófobos e fundamentalistas. E ainda pensam que preconceituosos são os outros.

Um campeão das sessões da tarde da Globo, “A Família Buscapé” (1993) mostra como Hollywood enxerga a metade menos festejada do país pela cultura pop: um bando de jecas sem qualquer refinamento e com uma inocência nas relações pessoais que beira a debilidade mental. No enredo, baseado na antiga série da CBS, a família Clampett fica bilionária ao descobrir por acaso petróleo em sua propriedade, um golpe de sorte completamente desprovido de mérito e talento. Como pessoas tão ignorantes e desprovidas de astúcia construíram o país mais livre e próspero da história ao romper com uma metrópole européia, Hollywood não explica.

Em “Forrest Gump”, lançado no ano seguinte, esta visão preconceituosa é ainda mais contundente: enquanto Hollywood se vê como Jenny (vivida por Robin Wright, a Claire Underwood de House of Cards), a jovem porralouca da geração Woodstock que acaba morrendo de AIDS, Forrest é mentalmente retardado e todos os seus sucessos são fruto de sorte, de estar no lugar certo na hora certa por puro acaso, exatamente como Jed Clampett, o chefe da Família Buscapé. A repetição sistemática destas mensagens esnobes pela indústria do entretenimento mais poderosa do mundo ajuda a explicar o atual fosso que separa as duas metades do país, a metade que empreende e a outra que demoniza quem produz ou demanda benefícios governamentais.

Este preconceito elitista dos intelectuais e artistas não é incomum, como sabemos no Brasil. A maneira como as novelas e minisséries globais retratam agricultores, produtores rurais e moradores de cidades de fora do eixo Rio-São Paulo segue a mesma linha de personagens com sotaques exagerados, visões de mundo preconceituosos, vida familiar disfuncional, religiosidade hipócrita e comportamento violento, com raras exceções. Produtor rural é “coronel”, agricultor é “Tião Galinha”, mulheres idosas são viúvas raivosas, vingativas e extremistas, enquanto as divergências são resolvidas à bala.

O liberalismo, antes de ser um fato econômico, é um fenômeno cultural muito bem descrito em obras como a estupenda trilogia da historiadora e economista Deirdre McCloskey. Sua obra mostra como mercados e comércio são tão antigos quanto as sociedades humanas, mas foi a partir de uma revolução sócio-cultural iniciada na Holanda do séc. XVII e depois seguida pela Grã-Bretanha do século seguinte que comerciantes, financistas e produtores em geral passaram a ser admirados e respeitados socialmente. Suas atividades foram entendidas como compatíveis com a moralidade cristã e merecedoras de apoio, incentivo e investimento. Esta mudança de mentalidade abriu caminho para a explosão de inovações da revolução industrial britânica e o nascimento da economia de livre mercado como se conhece hoje.

Antes do século de ouro holandês, comerciantes tinham um papel secundário na condução da política e da economia das principais potências mundiais, o que se refletia nas artes. A obra de Shakespeare, produzida numa época imediatamente anterior ao florescimento do liberalismo, reserva para comerciantes e financistas um lugar meramente coadjuvante, com raras exceções como em O Mercador de Veneza, escrita entre 1596 e 1598. A Veneza do séc. XIV, palco do drama de Antonio, Shylock e Bassânio, é mercantilista e pré-capitalista, discriminatória com judeus e que em nada se parece com as democracias liberais dos dias de hoje.

Os EUA se tornaram a maior potência industrial do mundo já no séc. XIX, seu primeiro século de existência como nação independente, pela inventividade e diligência de ícones do empreendedorismo como Cornelius Vanderbilt e James J. Hill (ferrovias), John D. Rockefeller (petróleo) e Andrew Carnegie (siderurgia), seguidos poucos anos depois por Henry Ford, entre outros. Rotulados de “barões ladrões” pela propaganda marxista, eles foram os pioneiros da economia real que construíram suas fortunas produzindo bens e serviços físicos com trabalho duro, tenacidade, talento e coragem premiados pela preferência dos consumidores do mercado interno e externo.

Depois de uma sangrenta guerra civil que dividiu o país entre 1861 e 1865, dizimou um milhão de americanos e destruiu economicamente o sul, foram estes e milhares de outros empreendedores que não apenas reconstruíram os EUA como em apenas duas décadas conduziram a nação à liderança industrial do planeta. Foi uma época de sucessivos presidentes republicanos que colaborou decisivamente para uma economia voltada para a produção e um controle da expansão do governo. Até espiritualmente os empreendedores do final do séc. XIX encontravam apoio social, como do Papa Leão XIII.

Crítico declarado do socialismo e autor da encíclica Rerum Novarum, publicada em 15 de maio de 1891, Leão XIII afirmou: “socialistas instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para – os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social.”

Os empreendedores ainda não eram o alvo preferencial de intelectuais e artistas ocidentais, com exceção óbvia dos autores marxistas. Os livros mais populares da época ainda tratavam das grandes questões existenciais e os ricos criticados em obras como as de Charles Dickens eram censurados em termos morais e não econômicos, muito menos as obras demandavam intervenções estatais para “corrigir” problemas.

Para ficar no antagonista mais popular de Dickens, Ebenezer Scrooge, o avarento de Um Conto de Natal, é preciso lembrar que ele não teve sua riqueza confiscada por burocratas cleptomaníacos em nome da “justiça social”. Sua jornada é meramente espiritual e metafísica. Scrooge encontra a redenção de sua alma a partir de uma viagem psicológica em que é confrontado com seus fantasmas internos e com uma reflexão moral sobre as consequências de seus atos e da sua avareza, um dos sete pecados capitais que é combatido com a generosidade, uma das sete virtudes cristãs.

Enquanto a alta cultura ainda se preocupava com a alma humana, já em meados do séc. XIX surge uma casta de intelectuais com fortes restrições ao livre mercado e ao liberalismo, incluindo críticos literários que passam a fazer releituras ideológicas e revisionistas dos clássicos na tentativa de colar neles narrativas socialistas. Nestas releituras, o mal é sempre associado ao capitalismo. O Mercador de Veneza, segundo as novas visões críticas, mostraria a culpa do capitalismo e do cristianismo por Shylock ser “oprimido”. Shakespeare, rotulado como um católico anti-semita e preconceituoso, seria acusado de ter excedido as tintas ao pintar Shylock como um judeu egoísta e materialista, capaz de tudo para recuperar seu dinheiro. Qualquer um familiarizado com a obra e honesto intelectualmente não se enganaria por uma leitura tão pedestre, mas a semente da futura teoria crítica frankfurtiana, um câncer do séc. XX, começava a ser plantada.

A abundância e a prosperidade resultantes da exuberância do “século americano”, aquele que consolidou a liderança política, econômica e militar do país do mundo, veio dar espaço, especialmente entre as elites urbanas, à construção da imagem do empreendedor e do industrial como um sádico explorador, egoísta, insensível e vampiresco. Foi no séc. XX que a bourgeoisie virou definitivamente sinônimo de uma classe desprezível, gananciosa, tosca, aproveitadora e desumana, desprovida da superioridade intelectual e da grandeza moral autodeclarada e imerecida de artistas, acadêmicos e revolucionários de esquerda em geral. O ódio ao empreendedor não é fortuito ou um dado da natureza, é fruto de uma estratégia política muito bem planejada e executada.

Comerciantes, artesãos e produtores em geral sempre foram desprezados pela nobreza de seus países, com uma leve pausa na “Era Burguesa” iniciada no séc. XVII e até meados do séc. XIX. Com a revolução industrial criando novas fortunas a cada instante e incluindo milhões de consumidores no mercado, o desprezo ao nouveau riche volta com força total. O homem mais rico que se tem notícia na história, John D. Rockefeller, foi transformado no símbolo dos “barões ladrões”, termo popularizado pela intelectualidade marxista dos anos 20, década de uma prosperidade surpreende e retratada de forma pejorativa em obras como O Grande Gatsby (1925) de F. Scott Fitzgerald.

A fortuna dos empreendedores americanos da Era Dourada americana (1870-1900) teria sido uma obra de práticas abusivas, cartelização, destruição ilícita de concorrentes e exploração de mão-de-obra. Seus descendentes, herdeiros ignorantes e caipiras como a Família Buscapé, com exceção dos doutrinados nas universidades de elite e transformados em financiadores de causas de esquerda com fundações bilionárias.

A divisão ideológica e cultural da sociedade americana deu sua guinada mais radical nos anos 60, quando a mesma geração de baby-boomers, filhos dos heróis vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, que num espaço de poucas semanas colocou o homem na Lua e fez Woodstock. Enquanto parte daqueles jovens ainda acreditavam nos ideais dos Pais Fundadores e no sonho americano, outra parte era radicalizada politicamente e passava a ver o próprio país, sua sociedade, sua religião, sua cultura e seu sistema econômico como a raiz de todos os males do mundo.

Influenciados pelos pensadores marxistas da famigerada Escola de Frankfurt e dos pós-modernistas franceses, estes jovens abraçaram ideais anti-americanos e anti-liberais, passando a exaltar aberrações genocidas como a revolução cubana, a China maoísta e a URSS em plena Guerra Fria. Seu alvo era o capitalismo e, por extensão, tudo que o próprio país representava. Esta geração, hoje septuagenária, comanda grande parte da indústria cultural, do jornalismo e da política americana nos centros urbanos. E é ela que até hoje despreza os empreendedores da economia real como Donald Trump, um empresário da construção civil que tem bilhões mas fala como homem comum e não como um afetado professor de uma das universidades da Ivy League.

Trump não é apenas o presidente mais velho a assumir o cargo, tendo tomado posse aos 70 anos de idade. É também o primeiro que não veio da política tradicional ou das forças armadas, mas direto do mundo empresarial e do entretenimento. Sua eleição representou um abalo sísmico que a elite cultural filo-européia das grandes cidades americanas levará tempo para superar, se é que superará um dia, já que sua obsessão hoje é interromper seu mandato a qualquer custo.

O mapa eleitoral da eleição presidencial de 2016 mostra claramente como os eleitores do Partido Democrata, em azul, estão concentrados em áreas muito determinadas como parte da Califórnia e da Nova Inglaterra. Já os eleitores do Partido Republicano, em vermelho, estão espalhados em praticamente todas as zonas eleitorais do país, especialmente no flyover country. Este mapa é a maior prova da importância do regime de colégio eleitoral para a democracia americana, desenhado exatamente para que um presidente representasse o país e suas diferenças e não apenas alguns centros urbanos específicos, por mais populosos que sejam.

O esnobe leitor da The New Yorker ainda não acredita que a Família Buscapé e Forrest Gump venceram, mas a surpresa é fruto do total desconhecimento de quem é Donald Trump e de quem ele representa. Para se ter uma pequena idéia, bastaria assistir alguns capítulos de O Aprendiz, reality show estrelado por Trump e sucesso de audiência por quinze anos. Lá está o empresário implacável, exigente, meritocrático, narcisista e pouco refinado, que só é aceito relutantemente nos salões chiques de Manhattan e nas festas em Beverly Hills pelo dinheiro.

Depois de mais de dois séculos de revolução industrial, as elites culturais e dinásticas dos grandes centros urbanos e seus intelectuais de aluguel ainda nutrem um profundo horror e desprezo pelos burgueses, essa gente que constrói patrimônio trabalhando e com pouco tempo ou interesse em se dedicar à cultura, ao discurso ideológico e à caridade, já que fazer doações é sempre bem visto pela nobreza, mas abrir os salões para novos ricos jamais. Quando burgueses bem sucedidos financeiramente se encantam pelo estilo de vida da nobreza, não raro passam a mimetizar seu modo de vida e fazer de tudo para que seus filhos tenham uma educação diferente e, talvez involuntariamente, passem a odiar tudo que representam. Trump não cometeu esse erro, tanto que Hillary Clinton elogiou publicamente seus filhos em um dos debates.

É evidente que não há qualquer necessidade de se optar entre ter cultura ou empreender, pelo contrário, uma formação clássica e uma imaginação moral bem desenvolvida são fundamentais para o desenvolvimento pleno do indivíduo, o que se reflete inclusive na qualidade do seu trabalho e na sua vida. O problema não é ler ou não ler, é a bibliografia. Se o zeloso pai burguês não souber exatamente como escolher as referências culturais para os filhos, pode acabar entregando a próxima geração da família para tutores radicais que aproveitarão a oportunidade para doutrinar as mentes mais jovens e frágeis, com pouca cultura e muito dinheiro, em suas próprias perversões ideológicas. O Brasil, não custa lembrar, é o país do herdeiro de banco que fez uma hagiografia cinematográfica de Che Guevara .

Trump não é caipira, começou sua carreira trabalhando nos negócios da família e com uma herança nada desprezível do pai, mas seus modos, seu linguajar e sua postura não são apenas aceitos pelo homem comum, eles são quase representações caricaturais do que qualquer americano sem pedigree faria se dispusesse de oito bilhões de patrimônio, o que inclui sonhar com o cargo mais poderoso do mundo.

A Família Buscapé ainda está rolando de rir.

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