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Pouco menos de ano antes da próxima eleição, movimentos políticos, partidos e lideranças começam a surgir proclamando não serem ideólogos mas que apenas buscam “o bem comum”. Como se não bastasse, o governador de São Paulo e pré-candidato à presidência pelo PSDB disse em entrevista recente que Lula seria de “extrema-direita”. O eleitor tem motivos para estar confuso.

Alguns mitos só vão morrer com uma bala de prata, água benta ou uma estaca no coração. Um dos mais deletérios é o de que se você quer “ajudar os pobres” você é “de esquerda” e se você defende a existência de empresas você é “de direita”. As idéias não precisam sequer levar aos resultados alegados, basta que pareçam bem intencionadas para já ganharem rótulos.

Pode parecer moderninho ser “isentão”, mas a estratégia de dizer “eu sou racional, só me preocupo com o que dá certo, meus adversários estão presos em ideologias” é de Napoleão Bonaparte (1769-1821), ou seja, tem pelo menos 200 anos (leia mais em “The Tyranny of Cliches” de Jonah Goldberg). Até Napoleão, ideologia era o estudo das idéias, mas o imperador francês ficou incomodado com intelectuais da época como Jean-Baptiste Say, um herói para qualquer liberal clássico que se preze, e passou a rotular seus desafetos de “ideólogos” no sentido pejorativo que se usa até hoje.

A partir deste momento, ter uma “ideologia” era algo feio e ruim, irracional e antiquado, coisa de gente dogmática e teimosa, enquanto Napoleão representaria os verdadeiros interesses da nação acima das paixões pedestres dos intelectuais, militantes e politicamente engajados franceses que ousavam desafiar o imperador.

Marx partiu daí para defender que quem não pensava como ele era um mero representante dos interesses da sua classe, um advogado mesmo que involuntário da ideologia burguesa e das classes dominantes, enquanto ele, claro, era a voz da razão, da ciência, da verdade e do futuro. O comunismo era “ciência” e quem não concordava era “alienado”. Marx desqualificava, no atacado, toda e qualquer crítica às suas idéias sem precisar entrar no mérito da discussão, bastava classificar o adversário de “burguês” que tudo que ele dissesse deveria ser descartado. A discussão política nunca mais foi a mesma desde então.

A esquerda até hoje sofre deste ranço marxista de colar na testa dos adversários todo tipo de rótulo para fugir da discussão. A tática serve para reforçar, de forma intelectualmente desonesta, que seu lado estaria apenas defendendo o bom senso, a razão, a ciência, a marcha de história e o que dá certo. De Woodrow Wilson a Barack Obama, os presidentes americanos mais à esquerda também embarcaram na narrativa. Obama chegou a dizer que os EUA precisavam de uma nova declaração de independência, mas nesse caso uma libertação da “ideologia”, “preconceito” e “pensamento pequeno”. E como não cometer esses erros tão feios? Concordar com Obama, claro.

É por isso que você nunca vai ouvir alguém dizer “estou abrindo mão das minhas idéias e ideologias em função das suas”, o discurso é sempre “eu sou prático e racional, só me preocupo com eficiência e razão, por que você discorda de mim? Você deveria parar de acreditar em ideologias” e, bem, pensar como o “pragmático”. Como disse o Almirante Ackbar em Star Wars, é uma armadilha.

Todo pensamento traz o eco de uma cosmovisão (a “Weltanschauung” da qual tratou Freud e tantos outros),  de uma maneira de ver o mundo. Você pode pegar uma informação concreta, como o número de pobres no mundo, e dizer “o livre mercado deu certo porque tirou bilhões da pobreza” ou “o livre mercado deu errado porque ainda há pobres”. Quais dos dois está certo?

Quem deveria estar formulando a política econômica do país, o que acredita que o livre mercado deu certo, e portanto é preciso investir ainda mais na redução do estado ou o segundo que quer regular e controlar os mercados? Cada um terá uma posição que nasce de uma escala de valores e prioridades. Você considera um embrião uma vida ou um bando de células? É uma escolha subjetiva e você não deveria se envergonhar disso, ela será apenas um reflexo de quem você é, de como você pensa, sente e reage ao mundo.

Acredito que você saiba, mas não custa repetir:

1. Quais são os povos mais filantropos e solidários do mundo?

Não é questão de opinião: todos os levantamentos sérios mostram que os países com livre mercado e cultura judaico-cristã são os mais filantropos e caridosos do mundo. Índices como o World Giving Index, com raras exceções, colocam anualmente os EUA no topo. E não estou falando apenas de doação em dinheiro (o que não muda o resultado dos rankings), mas também em caridade pessoal, como tempo dedicado ao voluntariado.

Quanto maior o estado, menos solidariedade privada ou, para usar o termo sociológico, menos “capital social”. Se o estado toma o dinheiro da sociedade, o cidadão muda o foco de doador para potencial receptor, ele passa naturalmente a lutar pelo dinheiro dos outros que foi apropriado pelo governo. Como o socialismo destrói a capacidade de produção de riquezas de qualquer país, o número de doadores privados tende a zero enquanto a quantidade de necessitados não para de aumentar até a economia entrar em colapso, como estamos vendo agora na Venezuela.

Um dos países menos filantropos do mundo é a França, berço de quase todas as idéias de esquerda e, de longe, a maior influenciadora da intelectualidade e das universidades brasileiras. No Brasil, uma ex-colônia lusitana mas uma colônia mental francesa há mais de um século, ajudar é “função do estado” e das leis que devem “garantir direitos”. O resultado está aí.

2. Ser de esquerda é ser contra a economia de mercado e a propriedade privada

Este talvez seja o erro mais comum: “aceitar” a existência de empresas, de propriedade privada ou até falar que quer facilitar “pautas empreendedoras” como abrir empresa mais rápido e defender temas da moda como o Uber fazem alguém ser “de direita”. Não faz. Não custa lembrar que os socialistas como Gregório Duvivier defendem veementemente o Uber.

O programa de governo do ex-prefeito petista Fernando Haddad na fracassada campanha de reeleição para prefeito de São Paulo fala em ampliação das parcerias público-privadas e é cheio de modismos hipster problematizadores como “internet das coisas”, “smart citizen”, “smart city” e “endowment fund”. O programa da ultra-esquerdista Luiza Erundina falava da criação de um “imposto voluntário” para quem acordasse com vontade de dar dinheiro para o governo. Nada de coerção socialista, expropriação de propriedade ou afins.

Marcelo Freixo, o candidato de extrema-esquerda do PSOL que perdeu para Marcello Crivella a prefeitura do Rio ano passado, defendia propostas em seu programa de governo como “criar e apoiar centros de comércio popular nos bairros” e “oferecer cursos de qualificação profissional para a gestão de pequenos negócios e cooperativas”.

O Rio teve também uma candidata assumidamente comunista, Jandira Feghali, que dizia em seu programa de governo que pretendia dar “apoio para formalização de pequenos empreendedores”, “implementar um programa de apoio a instalação de agroindústrias na forma de cooperativas” e fomentará “o desenvolvimento tecnológico, a educação e a participação no Plano Nacional de Banda Larga, visando à interiorização dessa infraestrutura”. Esta era a pauta, repito, da candidata COMUNISTA. Até a candidata do partido mais radical de todos, Thelma Bastos do PCO, dizia em seu programa que defendia a “completa liberdade para a operação dos pequenos transportistas”, o que não deixa de ser uma pauta liberal.

Regimes fortemente estatistas e intervencionistas como o fascismo italiano, o nazismo, o “desenvolvimentista” brasileiro, o bolivariano, entre outros, são tudo menos regimes liberais, mesmo que convivam com a iniciativa privada, empresas e empresários. Não é a existência de “corporações” e de “federações de indústrias”, versões modernas das guildas medievais, que caracterizam regimes liberais ou “de direita”. São os regimes livres, que não apenas facilitam a criação de novas empresas como desregulamentam radicalmente a economia para que qualquer inovador possa competir com as corporações, que podem ser chamados de liberais clássicos (e não liberais no sentido americano, que desde FDR passou a significar “progressista” ou “esquerdista” em português).

São economias antiliberais e “de esquerda” as que, mesmo formalmente convivendo com empresas, criam tantos constrangimentos para o surgimento e crescimento de novas empresas. Estatização é coisa do tempo da sua avó.

Para muito liberal de miolo mole, propostas como as de Haddad, Freixo, Jandira e até de Thelma Bastos na última eleição bastariam para aceitar alguém como “moderado” e até defensor do empreendedorismo e da economia de mercado. Mas é preciso muito mais do que isso.

O liberalismo se baseia em alguns pilares como o governo “negativo”, ou seja, o papel do estado é do “guarda noturno”, do garantidor das leis, de contratos, da propriedade e da ordem pública e não de um “regulador” da economia, especialmente quando isso significa qualquer tipo de engenharia social. O estado não é um ente superior à sociedade, pelo contrário, é seu servidor e agente.

Não cabe ao estado conduzir a sociedade para qualquer tipo de futuro utópico imaginado por seus líderes, muito menos influenciar ideologicamente a população, ele é um mero aplicador das leis baseado no conhecimento acumulado pela sociedade ao longo de gerações e das suas tradições, crenças e princípios. Países cujas elites políticas, culturais e econômicas se desconectam da população tornam a sociedade dividida e, no limite, inviável.

Esquerdistas que se opõem visceralmente à iniciativa privada, que querem sua eliminação imediata, são exceções atualmente. A esquerda já entendeu que a eliminação rápida da iniciativa privada quebra os países rapidamente, por isso se diz que “o socialista é um comunista sem pressa”. A meta é a mesma, o que muda é o método.

Não custa lembrar também que Marx e Engels, no manifesto comunista, não defendiam a eliminação imediata da propriedade privada e do capitalismo, muito pelo contrário, diziam que no caminho para a sociedade comunista haveria uma fase de “capitalismo selvagem”.

3. Esquerda e Direita são conceitos ultrapassados?

Não sou dos que querem sempre reduzir as posições políticas a dois pólos, mas se é para fazer isso não há como fugir da diferença fundamental entre os que defendem mais ou menos intervenção estatal na sociedade na economia e na vida de cada indivíduo, entre os que vêem o estado como a locomotiva da sociedade, seu ente de razão, seu guia para um futuro glorioso e “progressista”, contra os que acreditam que a evolução social é feita pelos indivíduos com sólidas bases morais e livres para buscar trocas mutuamente benéficas com outros indivíduos, com a menor participação estatal possível no processo, num sistema que se retroalimenta das informações que nascem destas transações e que se sofistica, portanto, de baixo para cima, do individual para o coletivo, organicamente.

Neste sentido, o esquerdista não é, nunca foi e nunca será mais “solidário” ou “preocupado com os pobres”, e não apenas no sentido econômico, mas também por entregar ao estado a função da solidariedade privada, sufocando o incentivo social para a caridade individual. O intervencionismo estatal na sociedade asfixia a cidadania e, com ela, a solidariedade individual.

Ainda há muito trabalho pela frente se quisermos transformar o Brasil num país mais livre e próspero, um caminho que passa por chamar as coisas pelo nome e incentivar que mesmo alegados intelectuais estudem os conceitos fora da bibliografia escolhida com maestria pelos que querem eternizar nossa mentalidade socialista, antiliberal e antimercado.

O poeta francês Charles Baudelaire dizia que o grande truque do diabo é fingir que não existe. É um aviso que você nunca deveria esquecer.

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