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A ditadura de 64 devia nos ensinar como é perigoso o discurso da “doutrinação universitária”
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Florestan Fernandes e FHC: na visão do regime, perigosos marxistas.

 

Se não me engano está num livro do Tom Stoppard. A frase diz mais ou menos assim: a democracia de um país pode ser medida pela liberdade que têm os artistas. Pode-se estender a ideia, dizendo que o mesmo vale para a imprensa. Ou para a universidade. Enfim, para a liberdade de opinião, para a liberdade da inteligência.

Em vários momentos da história do Brasil encontra-se a parceria entre falta de liberdade de expressão e ausência de democracia. É possível começar lá atrás, ainda na colônia, quando se proibiu por aqui a própria existência de máquinas de imprensa. O primeiro jornal do país teve de ser impresso em Londres, para que os brasileiros não se subvertessem com ideias, digamos, impróprias.

A correlação segue ao longo do tempo. D. Pedro, déspota, tinha na imprensa uma vilã, e Libero Badaró, morto em seu governo, virou um símbolo da liberdade. O filho do imperador deixava que caçoassem o quanto quisessem dele na imprensa – e era muito mais democrata que o filho. Getulio, só para dar mais um exemplo, mostrou o seu horror à liberdade de pensamento com a criação do DIP – era a mais pura censura vigorando no país.

Seria interessante e necessário fazer um catálogo do que a mais recente ditadura brasileira, iniciada em 1964, pensava sobre imprensa e Academia, sem nem falar das artes. Mas não é preciso fazê-lo, na verdade. Já está muito bem feito pelo grande Elio Gaspari, em seus quatro (em breve cinco) livros sobre o período.

Em “A ditadura envergonhada”, quando fala do primeiro período do regime, sob Castello Branco, Gaspari conta que a ditadura “foi progressivamente alvejada no campo das ideias”. O governo que começou mais ou menos como uma “intervenção” (tão desejada por alguns cinco décadas mais tarde) rumava para a autocracia. Castello tentava evitar um fechamento maior do que o necessário. Chegou a receber líderes estudantis. Mas o caminho era mesmo o da repressão.

A vontade é de transcrever todo o livro, ou pelo menos longos trechos, de tão bom que é. Mas quem quiser pode ler a partir da página 222. Aqui fica, talvez, o essencial. Começando com a seguinte afirmação.

“Para purgar o ensino infiltrado por esquerdistas, policializou-se a universidade. Quatro reitores de universidades estaduais foram depostos. Na direção da Universidade de Minas Gerais colocou-se um interventor militar. Na de Brasília, um civil. Nela, puseram-se nove professores na rua como se fossem vendedores de loteria, pois nem sequer o ritual das investigações sumárias lhes foi concedido”.

Segue-se o trecho sobre a USP.

“Uma comissão secreta (…) produziu um documento em que propunha a punição de 44 professores e concluía ‘serem realmente impressionantes as infiltrações marxistas nos vários setores universitários, cumprindo sejam afastados daí os seus doutrinadores e os agentes dos processos subversivos”.

“O sociólogo Florestan Fernandes, arrolado no IPM da USP, escreveu uma carta de protesto ao tenente-coronel que o chefiava na qual bradava: ‘Não somos um bando de malfeitores’. Como resposta, foi preso. Um de seus assistentes, Fernando Henrique Cardoso, era considerado ‘marxista violentíssimo’, fugira para o Guarujá e de lá para Buenos Aires e Santiago.”

“Outros dois professores, da faculdade de medicina, denunciados por colegas, foram encarcerados no navio-presídio Raul Soares, fundeado no largo de Santos. Um deles teve a filha de seis meses proibida de entrar na creche do hospital das Clínicas. Expulsaram-se alunos no Instituto Tecnológico da Aeronáutica e nas faculdades nacionais de Direito e Filosofia.”

UFPRO catálogo vai longe. E vale ler. Mas já se tem a ideia, aqui, do que se segue do pensamento, típico de certas ideologias, de que é preciso manter a universidade como um instrumento “livre de ideologia”, do que acontece quando se acredita que é preciso eliminar a “doutrinação” da escola e do que pena um país, às vezes por décadas, por limitar o que se pode e o que não se pode ensinar a seus jovens por medo de “subversão”.

Mas vale transcrever ainda um último parágrafo de Gaspari:

“As cassações e os inquéritos produziam sobre o corpo docente da universidade brasileira, aos poucos, um efeito depurador de sentido oposto ao que o regime pretendera. Os liberais, que discretamente apoiaram a derrubada de Goulart, refluíam para a oposição ou, pelo menos, para um silêncio envergonhado diante da anarquia de IPMs, delações e arbitrariedades militares. A esse refluxo dos liberais correspondia, quase sempre, um avanço dos aproveitadores associados à extrema direita, o que haveria de funcionar como um ciclo perverso. Mais avançava o oportunismo, mais retraíam-se os liberais, mais radicalizavam-se os estudantes, e policializava-se a universidade, fazendo avançar o obscurantismo, e assim por diante.”

Fica apenas a pergunta: será que aprendemos com os nossos erros?

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