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Da coluna Caixa Zero, publicada nesta quarta-feira, na Gazeta do Povo:

Um candidato a filósofo escreveu certa vez que a ordem social não deveria ser baseada na legislação, “mas sim nos costumes tradicionais da população”. Segundo seu raciocínio, “à legislação compete refleti-los, sob pena de ser, na melhor das hipóteses, irrelevante”. Ou seja: a ideia é de que, para ter uma democracia, é preciso que os costumes do povo sejam sempre a base da lei. Tudo o mais seria imposição inválida, já que não se estaria respeitando a maioria.

Por esse raciocínio, que não é tão raro, se a população tivesse um costume reprovável, a lei não poderia agir. Imagine uma sociedade machista em que o fato de um homem bater na mulher fosse considerado normal. Em que se dissesse que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Se alguém tomasse uma providência contra, se o Congresso metesse a colher aprovando a Lei Maria da Penha, por exemplo, estaria se impondo ditatorialmente.

Veja-se o que revelou por esses dias uma pesquisa do Ipea. Dois em cada três entrevistados da pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres” concordaram com a frase segundo a qual “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. E 58,5% disseram “sim” quando questionados se haveria menos estupros “se as mulheres soubessem se comportar”. Houve quem se indignasse. Houve quem tentasse mostrar falhas da pesquisa.

Toda pesquisa é contestável, claro. Mas o nível da argumentação de certos conservadores tem sido o seguinte. Para mostrar que não estamos em uma sociedade machista, chegaram a dizer que o Ipea está enganando a população. Como? Que se diga que as mulheres devem ser “atacadas” não quer dizer nada violento. Um blogueiro da revista Veja, por exemplo, escreveu o seguinte: “Quantas vezes homens de bem não dizem aos amigos que ‘partiram para o ataque’ com fulana, querendo dizer que apenas a abordaram de forma mais incisiva.” Ah, os homens de bem e seus ataques às mulheres…

É evidente, para qualquer pessoa que bote os pés para fora de casa e que não seja um lunático, que o Brasil é um país machista, onde a tolerância com a violência masculina é aceita, em grau maior ou menor, como uma coisa natural. O machismo é uma de nossas marcas principais. É uma característica permanente de nossa sociedade. É um traço dos “costumes tradicionais da população”. E quem tenta jogar isso para debaixo do tapete parece estar meramente querendo manter as coisas como elas são.

Adotar o tipo de conservadorismo defendido por nosso candidato a filósofo significa querer preservar as coisas como elas são. Faz sentido querer conservar as conquistas que a sociedade faz rumo a um mundo mais justo, claro. Em relação à democracia que conquistamos, vale a pena ser conservador. Mas há muito para que essa democracia se aperfeiçoe, e portanto é preciso querer mudanças. O mesmo vale em outras áreas. Só valeria a pena ser um conservador no sentido integral da palavra em uma sociedade ideal. Que, aliás, não existe.

Enquanto vivemos num mundo em que mulheres são agredidas, estupradas e nossos direitos são violados diariamente, é preciso querer mudanças. Jogar o problema para longe da luz é apenas uma falsa solução. Não aceitar que a lei tente impor comportamentos mais éticos e mais decentes, pior ainda. É condenar-nos à eterna barbárie. Democracia, como diz o historiador Daniel Medeiros, é a defesa dos princípios constitucionais e não unicamente a deliberação pela vontade da maioria.

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