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Da coluna Caixa Zero, publicada nesta quarta-feira, na Gazeta do Povo:

João Ubaldo Ribeiro tinha uma capacidade incrível para criar histórias e diálogos. Como no seguinte caso: o sujeito entra no banco e pede uma quantidade de dólares. Desiste da compra e pede para trocar pelo mesmo valor em marcos alemães. Quando o caixa traz o valor, o sujeito agradece e vai se levantando para ir embora. “Mas como assim: e o pagamento?” “Eu troquei pelos dólares.” O caixa reclama: “Mas o senhor não pagou os dólares”. “Francamente, meu amigo. O senhor vai querer que eu pague uma coisa que não vou levar?”

Quando falava de política, os diálogos eram igualmente deliciosos. Em Viva o Povo Brasileiro, essa grande epopeia de nossa civilização, dois personagens conversam. O ano é 1897. Eis a conversa:

“É preciso ver as coisas com clareza! No mundo, alguns foram feitos para mandar, a maioria para obedecer, esta é que é a realidade!”

“Mas mandar pode querer dizer governar honestamente e não oprimir.”

“Que é que você chama de opressão? Que se pode fazer mais por esse povo? Dar-lhe banheiros? Continuarão a fazer suas necessidades nos matos! Dar-lhe dinheiro? Gastarão tudo com cachaça e farras! É preciso ver a realidade, é preciso conter a ação de progressistas delirantes como você, para que o país não caia na anarquia e no desgoverno! As poucas conquistas que conseguimos não serão tomadas! Vocês não tomarão nada de nós!”

Há coisas suficientes nesse pequeno trecho para escrever mais de uma tese sobre nossa origem social (e política). Nele, João Ubaldo está nos dizendo:

1. Que há um pequeno grupo que tem o poder político e que tem a capacidade de decidir o que será “dado” ao povo.

2. Que esse grupo acredita que algumas coisas não é prudente dar ao povo. Ou que é desnecessário que a população em geral tenha acesso a algo, já que nem vão saber o que fazer com aquilo (para que banheiros?).

3. Em parcelas desse grupo há quem acredite que os que governam são superiores, talhados para a função. Ao mesmo tempo, o povo em geral seria fadado ao fracasso (só serve para a cachaça e para as farras).

É claro que se trata de ficção, e de uma ficção sobre o final do século 19, mais de cem anos antes do dia em que João Ubaldo nos deixou. Seria insanidade querer dizer que nada mudou. Ou mesmo querer dizer que as coisas são assim tão simples e tão claras. Mas é preciso reconhecer que há mais do que simples caricatura nessa tentativa de compreender nosso povo.

Gente como João Ubaldo, independentemente de ideologia, que usa seu talento para nos explicar, faz falta. Ele fará, certamente.

Suassuna e o abacaxi

Quis o destino que Ariano Suassuna tivesse problemas graves de saúde na semana após a morte de João Ubaldo. Outro nordestino, outro pensador do “povo brasileiro”, Suassuna contou em uma entrevista aquilo que, segundo ele, seria o resumo de sua literatura. Diz ele que a história era real e que simbolizava mais do que qualquer outra a vitória do mais fraco.

Um coronelzão, dono do pedaço, proibia que se fizesse barulho em frente a sua casa. O vendedor de frutas ficava quietinho até terminar de passar por ali, receoso de incomodar a soneca do chefe político da cidade. Até que um dia o coronel se viu à frente de um valentão recém-chegado ao local que se recusou a obedecê-lo. O vendedor vê o coronel passar pela humilhação e, logo em seguida, passando pela casa, estica o pescoço e grita como pode: “Olha o abacaxiiii!”

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