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Trump não é um conservador: ele joga fora o que houve de melhor em 150 anos
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Quando dizem que certas atitudes de desmantelamento do Estado são uma volta ao século 19, é preciso não se enganar. Estamos falando da primeira parte do século 19. Desde meados dos mil e oitocentos os governos e os povos da Europa começaram a dar os passos que hoje são alvo da direita tanto nos Estados Unidos quanto no Velho Mundo – e, claro, no Brasil.

Duas das disputas políticas mais importantes para quem quer contar a história do nosso tempo estão em jogo. Uma delas é justamente a que começou a ter seu curso na Alemanha, com Bismarck, um bom tempo antes da chegada do século vinte. Os governos começaram a trabalhar com a ideia de um Estado de Bem-Estar social.

Basicamente, segundo mostra o belo trabalho da historiadora Sylvia Nasar, o mundo havia percebido pela primeira vez, graças ao capitalismo, que não era necessário haver pobreza absoluta. Antes diz isso, havia Jane Austen – quem nasce pobre será pobre sempre. Depois, há Charles Dickens, Victor Hugo – a pobreza e o descaso com ela são vistos como males que devem ser superados.

Houve tentativas mais radicais de igualdade – algumas delas levaram ao caos e à morte, como se sabe. Mas houve belos avanços, principalmente nos países que não optaram pelo caminho radical da revolução. Passou a haver a ideia de que o governo deveria usar a riqueza gerada para diminuir o sofrimento dos que nada conseguiam.

Passou a haver uma consciência de que os ricos só enriqueciam porque havia condições, geradas pela comunidade, para que isso acontecesse. Sem estradas (pagas pelo erário), não se escoa produção; sem compradores, não há mercado; sem o grupo, sem a comunidade, a riqueza não existiria e, se existisse, seria estéril.

No século 20, mesmo os Estados Unidos, o liberalismo clássico por excelência, aderiram a uma espécie de capitalismo suavizado, com o New Deal colocando freio na desigualdade ilimitada e criando um país de classe média durante os trinta anos de ouro que se seguiram.

Mas esse espírito de solidariedade entre as pessoas de uma mesma comunidade agora passa a ser atacado de maneira muito mais firme do que em outros períodos. Nem se fale dos histéricos que em tudo veem comunismo, em tudo stalinismo. Na esteira de Robert Nozick, passou a ressurgir a ideia de que o Estado em si é algo a ser evitado, a não ser em sua versão mínima. Um presidente chegou a dizer que o governo é problema, não solução.

Retomou-se o ensinamento de Ludwig von Mises, que queria ver na parede de todo governante uma frase de Grover Cleveland. Quando houve uma catástrofe e os moradores pediram apoio do governo, ele disse que as pessoas é que têm obrigação de sustentar o Estado, e não o inverso.

A segunda mudança que gradualmente foi havendo no século 20 é ainda mais significativa: é a consciência mais ou menos crescente de que cada um pode viver como quiser, de que não cabe ao Estado dizer como você deve pensar e de que deveríamos criar um ambiente em que vidas diferentes são bem-vindas – desde que, claro, não coloquem ninguém em risco.

Essa talvez seja a perda mais triste do nosso tempo, a do verdadeiro liberalismo político. A da perda da solidariedade entre os diferentes. Vivemos numa era de muros; de países que querem deixar a Europa; uma era em que o nacionalismo extremo ameaça chegar aio poder e em que governantes vivem pelo princípio do “eu” primeiro.

O outro passou a ser visto, de novo, como um empecilho, como alguém que deve se virar sozinho. O mais pobre, o de fora, o de longe, o que não é como nós – eis o inimigo. Eis um século e meio de avanços sendo repentinamente jogados fora. Dizem que isso é conservadorismo. É bem mais do que isso: o que houve de bom nos últimos 150 anos é justamente o que não estamos sabendo conservar.

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