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Ricardo Pozzo
Ricardo Pozzo| Foto:

Mando uma fotografia de Frida Kahlo pintando a um amor que ando a cultivar – e sempre, de algum modo, estamos cultivando um território que responde em outro alfabeto. Digo a um colega de redação que uso invariavelmente a palavra imaginário em meus textos, é um de meus resgatadores preferidos. Uma assinante do meu jornal avisa-me que chegou seu livro e que daqui a pouco irá para um curso de cirurgia cardiovascular, onde irá, literalmente abrir corações.

Eu cozinho batatas enquanto tomo uma cerveja.

Escrevo críticas literárias.

Vejo filmes em cabines às 10h30.

Vou ao teatro.

Tenho poucas contas e não entendo de cartão. Todo mês a funcionária do banco em que a Gazeta deposita meu salário me explica como faço para ver o saldo da minha conta.

Levo o lixo de dois dias ao seu devido local.

Pergunto à minha irmã se a vizinha pode vir limpar a minha casa em um dia desses. Há seis meses não pago ninguém para limpar a casa e aparentemente não morri.

O dono do antigo jornal em que trabalhava entrou com um processo contra mim depois do acordo que fizemos na Justiça. Ele nunca pagou meus direitos trabalhistas e chegamos lá a um valor aceitável – no último encontro de tribunal, em que ele move uma ação que é nitidamente uma retaliação emocional, curiosamente ele me chamou de vagabundo, o que achei um retrato de minha vida atual. Quando trabalhava entregando panfleto no sinaleiro, ninguém me chamava de vagabundo. Mas ninguém me olhava também. A vida, ao seu modo rochoso, melhorou.

O que me surpreendeu nessa história foi algo um pouco mais tangencial – posso usar tranquilamente a palavra porque meu ex-chefe não irá entender. Bem, eu acho que estou certo, ele acha que está certo. Cada qual defende seus interesses: empresa de um lado, funcionário de outro. Ao que me parece, nunca alguém conseguirá explicar a essa pessoa que não pagar férias, 13º, essas coisas todas, é o inadequado (e insensato). Ao mesmo tempo, ele não está completamente errado. O seu jornal é pequeno, ruim de nascimento – confesso não ter conseguido fazer muita coisa quando fui editor – e não dá muito dinheiro: é um impresso, afinal. Aí, como faz? Confesso também que naquele momento em que ele me chamou de vagabundo, quando pude perceber em seus olhos a mágoa, o rancor e uma espécie indefinida de medo – um insubordinado é sempre uma ameaça -, fiquei triste e quase pensei em devolver o dinheiro do acordo trabalhista – dinheiro que deve estar fazendo falta a um jornal tão modesto. Mas aí lembrei que a primeira vez em que fiquei um tanto chateado com um atraso de salário foi porque o sujeito tinha ido à Disney.

Surge-me assim, querida escritora paulistana, entre devaneios da vida concreta e nuvens anteriores, um desejo de saber como você está. Desde que rompemos nossos afetos por conta daquela fatídica viagem, tudo emudeceu e, mesmo assim, nós continuamos carregando nossos castelos de pó e solidão.

Sinto sua falta.

Como você está?

Meu coração é um episódio entre um fim e outro.

Ricardo Pozzo

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