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As sublimes comédias de separação de Woody Allen
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Divulgação
Diane Keaton e Woody Allen: quando a separação é um mal necessário.

Há na história do cinema norte-americano clássico um ciclo de filmes, realizados entre as décadas de 30 e 40, que tiveram impacto significativo na obra de Woody Allen. Inseridos no gênero das comédias românticas, fundamental na produção hollywoodiana e até hoje muito popular, esses longas-metragens chamaram a atenção do filósofo norte-americano Stanley Cavell, professor emérito de Estética na Universidade de Harvard, que os agrupou e os denominou de “comédias de recasamento”, cujos ecos são perceptíveis em filmes de Allen que debatem a questão do relacionamento amoroso, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977), Manhattan (1979) e Hannah e Suas Irmãs (1986), entre outros.

No livro Pursuits of Happiness (Harvard University Press, 1981), Cavell discute sete dessas comédias clássicas: As Três Noites de Eva, de Preston Sturges; Aconteceu Naquela Noite, dirigido por Frank Capra; Levada da Breca e Jejum de Amor, ambos assinados por Howard Hawks; Núpcias de Escândalo e A Costela de Adão, de George Cukor; e Cupido É Moleque Teimoso, do cineasta Leo McCarey.

Segundo Cavell, todos esses filmes, realizados entre 1934 e 1949, têm em comum o fato de defenderem a ideia de que “a conquista da felicidade exige não apenas a satisfação de nossas necessidades, mas a autocrítica e a transformação desses desejos”. Os personagens, a partir desse processo, enfrentam obstáculos, crises e se separam, para se sentirem forçados a amadurecer e repensar o relacionamento para, mais tarde, decidirem se casar novamente, construindo uma nova história em bases mais sólidas e verdadeiras.

Eram finais felizes pelos quais o casal de protagonistas tinha de brigar e sofrer muito mais do que nas love stories convencionais. Apostas no autoconhecimento e no entendimento do universo do outro, enfim.

Reinvenção

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) tem diálogo direto com esses longas sem copiá-los. É considerado um marco na trajetória das comédias românticas por vários motivos. Além de ter dado a Allen seu único Oscar de melhor direção e de ser um dos poucos títulos cômicos a ter vencido a estatueta de melhor filme (o outro, até então, havia sido justamente Aconteceu Naquela Noite, de 1934), a produção reinventa a narrativa típica das histórias conjugais discutidas por Cavell.

Allen vive no filme um de seus muitos alter egos: Alvy Singer, um humorista judeu e divorciado que faz psicanálise (tema recorrente na obra do diretor) há 15 anos. Ele acaba se apaixonando por Annie Hall (Diane Keaton), uma cantora em início de carreira, bastante questionadora e independente.

A personagem, tanto em suas atitudes quanto na maneira de se vestir, algo masculina e essencialmente urbana, encarna como poucas no cinema da época a mulher pós-revolução sexual, sob evidente influência do movimento feminista.

Como o título original do filme, Annie Hall, mesmo aponta, o foco central da narrativa é o impacto transformador da protagonista na vida de Alvy, um homem talvez despreparado para encarar essa “nova mulher”. Na trama, o casal decide morar sob o mesmo teto pouco depois de se conhecer, mas logo começa a enfrentar dificuldades de relacionamento que culmina, enfim, em uma separação definitiva.

O fato de não oferecer ao público um happy end, sem a reafirmação do casamento, é, em si, uma ruptura com a tradição hollywoodiana do gênero. O que de certa maneira aproxima Annie Hall dos filmes discutidos por Cavell é a disposição dos personagens centrais de enfrentar fantasmas pessoais, assim como os anônimos que falam direto para a câmera sobre seus relacionamentos, em um recurso emprestado do documentarismo e que voltaria ser usado em Harry e Sally – Feitos Um para o Outro (1989), muito influenciado por Annie Hall.

Outro traço cavelliano do longa de Allen é o anseio de insistir na busca por um amor, apesar das agruras representadas pelo convívio a dois, como forma de depuramento pessoal.

Alvy, no emocionante desfecho do filme, em que rasga elogios a Annie, apesar de eles não estarem mais juntos, faz referência a uma piada. Um homem vai ao psiquiatra e diz ao analista que o irmão é maluco porque acredita ser uma galinha. “Por que você não o interna?”, pergunta o analista. “Porque eu preciso dos ovos”, responde o paciente. Alvy arremata sua bela fala, dizendo que as relações amorosas podem ser loucas, absurdas e irracionais, mas a maioria segue as enfrentando e as tolerando porque “precisa dos ovos”. Para crescer e, um dia, quem sabe, acertar e ser feliz. Com Annie Hall, Allen funda um ciclo de “comédias de separação” que dialoga com as de “recasamento” descritas por Cavell.

Ambiguidade

Espécie de irmão siamês de Annie Hall, Manhattan traz Allen no papel de Isaac, outro escritor de meia-idade em crise amorosa. Sua ex-esposa (Meryl Streep) o deixou por outra mulher e, para superar o trauma, ele escreve um livro, no qual revela assuntos muito particulares do relacionamento.

Enquanto aguarda a publicação, Isaac se apaixona por Tracy (Mariel Hemingway), uma jovem de 17 anos que corresponde a esse amor. No entanto, ele também se sente atraído por Mary, uma pessoa mais madura e intelectualizada, amante do seu melhor amigo, que é casado.

Ao se render à paixão e optar por Tracy, que no fim da trama anuncia que vai partir por seis meses, para ingressar no elenco de uma peça teatral, Isaac, assim como Alvy de Annie Hall, se desespera em sua eterna crise de autoestima masculina. Não crê que o amor vá durar. Aposta que a garota irá perder sua inocência, e se corromper em um mundo que conhece mais de perto. Mas ela insiste, demonstrando mais segurança do que se espera de alguém tão jovem, e o deixa sem palavras, inseguro. É um desfecho ambíguo, não feliz e incerto, mas que, irmanando Alvy e Isaac, reafirma a importância das experiências do amor e – por que não? – da separação, como indispensáveis ao crescimento pessoal do ser humano. Nisso, Cavell e Allen parecem concordar.

Assista à cena final de Annie Hall, sobre a qual falo no artigo.

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