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Protesto contra o governo Maduro na cidade de Valencia, na Venezuela. País está à beira de uma guerra civil. Foto: Ronaldo Schemidt/AFP
Protesto contra o governo Maduro na cidade de Valencia, na Venezuela. País está à beira de uma guerra civil. Foto: Ronaldo Schemidt/AFP| Foto:

Após mais de uma década de crescimento econômico, aumento da renda da população e melhoria da qualidade de vida, países da região voltam à incerteza e revivem a maldição latino-americana

Protesto contra o governo Maduro na cidade de Valencia, na Venezuela. País está à beira de uma guerra civil. Foto: Ronaldo Schemidt/AFP

Dez anos de otimismo, desenvolvimento econômico, aumento da renda per capita, estabilidade política e avanços em indicadores internacionais que medem a qualidade de vida, como IDH (índice de desenvolvimento humano). Esse é o lado positivo do período entre 2003 e 2013 para grande parte da América Latina, especialmente para a América do Sul. Parecia até que a região iria acabar com seus males históricos.

A euforia desencadeada pelos altos preços de produtos primários e minerais, além do petróleo — embalada pelo sangre caliente dos latino-americanos — tinha lá suas justificativas e ofuscava pontos negativos que se perpetuavam em toda a região.

As economias de muitos países cresciam a taxas bem acima das registradas em períodos anteriores: houve picos de expansão anual superior a 7% no Brasil, 9% na Argentina, 8% na Colômbia e 9% no Peru, só para citar alguns exemplos. Milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema e até se criou uma nova classificação de classe média, a chamada classe C. Baixo desemprego, aumento do número de estudantes nas universidades, ampliação da produção e do consumo e obras de infraestrutura completavam o quadro recheado de expectativas sobre um futuro promissor.

Tudo não passou de ilusão.

Protesto contra o governo Macri, em Buenos. Greve geral em abril paralisou vários setores da economia argentina. Foto: CTA/Argentina

A maldição latino-americana voltou com força nos últimos três anos. Rapidamente ocorreu uma reversão dos ganhos na economia, e a instabilidade social e política jogou a região na incerteza. Em pouco tempo o sonho de desenvolvimento — em que sua população pudesse desfrutar de alto padrão de vida, com melhores serviços de saúde, educação, moradia, garantias plenas de direitos civis — virou pesadelo.

Acometidos pela depressão, os latino-americanos buscam explicações para os motivos da derrocada. E as respostas são confusas, influenciadas por uma forte polarização ideológica e disputas de rumos políticos e econômicos. Enquanto alguns setores acusam os governos de esquerda e culpam o chamado populismo, com aumento descontrolado de gastos, outros defendem o que chamam de governos populares, que priorizaram programas de inclusão social.

Como na intrigante pergunta “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”, os atores desse palco de discórdia e desesperança atuam sobre uma dúvida: se o debacle da economia provocou a crise política ou se as “guerras políticas” levaram ao travamento da economia. Num debate em que os dois lados estão convencidos de estar com a razão, é preciso olhar para a conjuntura internacional.

“A falta de investimento de parte do dinheiro
ganho com as exportações de matérias primas
em setores produtivos com alto valor
agregado levou os países da América Latina a
entrarem em uma crise econômica, financeira e
orçamental. A crise política e social é a
consequência.”

Jean-Jacques Kourliandsky, cientista político e pesquisador de
assuntos latino-americanos do Instituto de Relações Internacionais
e Estratégicas (Iris), com sede na França.

Apesar de ser resultado de um conjunto de fatores, a crise se explica, em grande parte, pela “queda dos preços dos recursos naturais que estes países exportam e porque diminuiu o crescimento da China, o seu maior importador”, diz o professor Andrés Malamud, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e que tem atuado em estudos sobre política latino-americana.

Sem desconsiderar fatores como investimentos errados, desperdícios e incompetência na gestão de recursos públicos, vários outros estudiosos também defendem a tese de que a ruína atual da América Latina se deu, “principalmente”, pelo tombo das exportações primárias e pela redução do apetite chinês.

“A crise que atinge os países da América Latina tem apenas marginalmente uma origem ideológica. Bolivarianos, liberais, todos os governos seguiram as mesmas políticas econômicas. Todos eles obtinham renda a partir da exportação de matérias-primas”, observa Jean-Jacques Kourliandsky, pesquisador de assuntos latino-americanos do Instituto de Relacões Internacionais e Estratégicas (Iris), com sede na França.

O diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Dallari, procura ser didático para explicar a situação. “Nas duas últimas décadas houve consolidação da democracia na América Latina, com índice de crescimento econômico constante, melhoria no quadro de distribuição de renda. Do ponto de vista internacional a região consegui superar os seus conflitos e se converteu em um território de paz; hoje não há conflito entre países. Mas, de dois ou três anos para cá, dependendo do país, esse quadro se reverteu, não do ponto de vista da segurança internacional, mas sim da deterioração da situação econômica, principalmente por causa da redução dos preços dos produtos primários, agrícolas, minerais, vendidos principalmente para a China e também para os EUA e Europa”, diz.

Apesar de haver unanimidade de que no mundo globalizado atual nenhum país é independente do fator externo, há, no entanto, quem discorde das análises que apontam a conjuntura internacional como fator exclusivo da crise. “A corrupção justifica boa parte do atraso do momento atual da América Latina”, avalia o diretor da Transparência Internacional para a região, Alejandro Toledo, que recentemente apresentou o Índice de Percepção da Corrupção de 2016, um indicador criado pela organização para monitorar os desvios nos países. Para ele, a corrupção torna-se o motor da crise ao desviar recursos que deveriam ser canalizados para o desenvolvimento.

A DIFÍCIL SAÍDA

Aposentados chilenos pedem mudança no sistema de previdência do país. Foto: www.nomasafp

Se o diagnóstico da crise na América Latina é complexo, com muitas nuances, uma solução para ela não é fácil. A região chegou a um ponto em que a crise econômica alimenta a crise política e vice-versa. Em casos extremos, como o da Venezuela, o país está totalmente paralisado, com empobrecimento da população e se aproxima de uma guerra civil. Governo e oposição se entrincheiraram e a disputa política contaminou o Legislativo, o Judiciário e o Ministério Público.

No Brasil, o desgaste provocado pelo impeachment de Dilma Rousseff, o envolvimento em corrupção dos principais nomes do governo que a sucedeu, incluindo o presidente Michel Temer, além da radicalização de setores da sociedade, impedem um entendimento nacional para sair do atoleiro. E há ainda uma crescente tensão gerada por propostas e medidas adotadas por Temer para ajustar a economia, como as reformas da Previdência e trabalhista e aumento de impostos, a exemplo do que ocorreu com os combustíveis.

O cientista político Andrés Malamud, da Universidade de Lisboa, não vê saída fora do contexto econômico internacional e coloca o fator político em segundo plano. “O crescimento (econômico) depende menos do que faça os governos e muito mais de condições externas, como os juros dos EUA e o crescimento chinês”, diz.

“Se é verdade que há insatisfação com a
política, com os políticos, com a forma
como a democracia vem se desenvolvendo,
parece claro que a opção da sociedade é
por aperfeiçoar a democracia, não por
voltar atrás, não por retroceder no sentido
do militarismo. E isso configura um quadro
de afirmação da cidadania, que ajuda a
superar essa crise.”

Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações
Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).

Uma das dúvidas que se levanta para saber a durabilidade dessa crise está relacionada às condições criadas pela região para enfrentar o efeito cíclico da economia globalizada. “O que precisa saber é se esse período de estabilidade e crescimento teria sido uma exceção, ou, ao contrário, se nós teríamos nesse período de expansão enveredado para uma trajetória mais sólida, capaz de superação”, observa Pedro Dallari, pesquisador da USP.

Rogelio Núñez Castellano, subdiretor do Infolatam e pesquisador da Universidade de Alcalá, de Madri, tem uma solução pronta. “Definitivamente, o melhor antídoto para defender a democracia é um Estado eficaz e eficiente, que promova políticas públicas de combate à pobreza e à desigualdade e de incentivo ao desenvolvimento econômico inovador e de matriz diversificada. Esta é a agenda urgente que a região tem pela frente”, escreveu em artigo publicado pela versão espanhola do jornal “El País”.

Apesar dos riscos que a crise traz à democracia, a região dá mostras de um amadurecimento democrático. A evidência disso, na opinião de analistas, seria a ausência de intervenção militar, como ocorreu em vários períodos turbulentos anteriores.

Para Dallari, esse amadurecimento é um fator importante para sair do enrosco atual. “Há a formação de uma sociedade civil mais exigente e que demanda aquilo que os norte-americanos chamam de accountability, que é a prestação de contas de seus governantes. Se é verdade que há insatisfação com a política, com os políticos, com a forma como a democracia vem se desenvolvendo, parece claro que a opção da sociedade é por aperfeiçoar a democracia, não por voltar atrás, não por retroceder no sentido do militarismo, embora isso apareça na voz de um ou outro. E isso configura um quadro de afirmação da cidadania, que ajuda a superar essa crise”, avalia.

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