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Eduardo Coutinho e o retrato de uma família qualquer
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Uma sala de estar, um sofá velho e uma banqueta. Ou algumas cadeiras em um jardim, que até então repousavam ao lado da mesa da cozinha. Para Eduardo Coutinho, o ambiente é detalhe, secundário. A atenção está não na moldura, mas sim no que preenche o quadro. O rosto cansado, apreensivo, um pouco confuso. As vozes que ora denotam nostalgia, vez ou outra refletem antes de falar, mas, sempre, sem exceção, expressam simpatia para com o entrevistador. Afinal, Coutinho é um velho conhecido. Um amigo da família. E amigo se recebe assim, com um abraço apertado e sem cerimônias.

A trajetória do cineasta Eduardo Coutinho, morto este ano, se confunde e mescla com a da família de Elizabeth Teixeira, retratada em seu celebrado documentário Cabra Marcado para Morrer, de 1985. Uma reedição do filme, lançada neste ano pelo Instituto Moreira Salles (IMS), traz como “extra” um documentário em que Coutinho, décadas depois, visita novamente filhos, netos e “agregados” de Elizabeth, além, claro, da própria.

Entre amigos: Coutinho é personagem fundamental de seu próprio documentário.

Entre amigos: Coutinho é personagem fundamental de seu próprio documentário. (Foto: Reprodução)

O estilo de Coutinho, ao conduzir essa viagem nostálgica, pode causar estranheza aos desavisados. O documentarista não se preocupa em soar como apenas um observador a resgatar depoimentos, deixando que os personagens falem por si e dirijam a narrativa – Coutinho é também protagonista desta história e age como o velho conhecido que é destas pessoas, deixando transparecer, desde o primeiro momento, o laço afetivo que o une a todos.

A condução da câmera em A Família de Elizabeth Teixeira é quase informal e capta inclusive os momentos que, em tese, seriam restritos somente ao documentarista e seus entrevistados. Coutinho chega na casa, bate palmas, ganha um abraço apertado, conversa amenidades – assim como aquele vizinho ou parente próximo faria, ao chegar para um café da tarde. O cineasta parece não se preocupar com o cinegrafista ou com qualquer orientação relativa ao enquadramento da cena. Está mesmo imerso naquela conversa, tanto que, vez ou outra, move o corpo para frente da câmera e ocupa o quadro – ora, a câmera que se vire.

Essa “informalidade planejada”, como é de se esperar, deixa o entrevistado totalmente à vontade. Ele não é levado para um estúdio, muito menos precisa reconfigurar o ambiente de seu quarto ou sala para receber a equipe. Basta que Coutinho se sente no sofá ou cadeira que estiver disponível, seja ao seu lado ou à sua frente, e deixe que a conversa siga, sem pressa. Sons ambientes irrompem vez ou outra e cobrem as palavras ditas, assim como um sujeito totalmente alheio pode surgir lá no fim do corredor, dar uma olhada e seguir seu caminho.  Tudo permanece na cena e no produto final, como se o lar do entrevistado fosse mesmo uma morada inviolável – inclusive aos truques de edição.

Eduardo Coutinho: documentarista resgatou e reviu a própria obra, ampliando o significado de Cabra Marcado para Morrer.

Eduardo Coutinho: documentarista resgatou e reviu a própria obra, ampliando o significado de Cabra Marcado para Morrer. (Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress)

Outra característica marcante de A Família de Elizabeth Teixeira – e da atuação do cineasta frente às câmeras – é a ausência de um briefing ou resgate histórico que antecipe as entrevistas ou a narrativa como um todo. Quem exatamente são essas pessoas? Quais foram os fatos marcantes que as levaram ao caminho de Coutinho décadas atrás? Quem são os personagens citados de modo tão informal e apressado nas conversas? Ao espectador, resta acompanhar como um terceiro visitante que poderia estar ali na sala, mas não ousa interromper a conversa para não prejudicar a força daquele momento único.

A falta de informações ou contexto prejudica a visualização do documentário? Apenas para os espectadores que buscam um filme mais “tradicional”. A Família de Elizabeth Teixeira é sim um complemento e um resgate em relação aos fatos mostrados em Cabra Marcado para Morrer. Mas é também o registro íntimo e revelador de uma família, repleto de histórias mal resolvidas, rompimentos, brigas e saudade daqueles que estão longe. O retrato de uma família que poderia ser a minha, ou a sua. E é isso que encanta e prende a atenção do espectador, que pode acompanhar esses relatos sem pressa, gozando da intimidade que Coutinho desfruta com estes entrevistados – ou amigos –  de longa data.

Aqui, vale resgatar o conceito de “informalidade planejada”. O cineasta abre mão de pirotecnias e uma mão pesada na direção para priorizar o relato, a história, a conversa que resgata e revela. Com isso, consegue produzir o retrato mais fiel possível dessas pessoas tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexas – mais uma vez, pessoas como nós.

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