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Ideia da semana: “A política não pode ser neutra”. Entrevista com Michael Sandel
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Divulgação
Sandel em sala de aula: uma estrela em Harvard.

Tive por esses dias o prazer de entrevistar um dos filósofos mais importantes da atualidade, o norte-americano Michael Sandel, para o caderno G Ideias, que saiu no sábado. Aproveito o espaço de quarta (onde tento justamente colocar uma ideia por semana por aqui), para divulgar mais um pouquinho a obra dele, que é bem interessante.

Quando Michael Sandel apareceu no cenário intelectual norte-americano, um grande nome dominava o cenário da filosofia política no país: John Rawls. Autor de Uma Teoria da Justiça, publicado em 1971, Rawls via suas ideias correrem o mundo e fazerem filósofos de todos os cantos escreverem outros livros, fosse para combatê-lo, fosse para apoiá-lo. Sandel, um jovem estudante, compartilhava de várias das ideias de Rawls e se entusiasmava com o fato de, pela primeira vez, um americano ser o pensador de política dominante na cena internacional.

No entanto, uma das ideias de Rawls incomodava profundamente Sandel. Era a ideia de que o Estado deve ser neutro, não podendo preferir uma teoria moral a outra. Assim, caberia às instituições unicamente julgar direitos e deveres dos cidadãos, mas nunca deixar que questões religiosas ou de fundo moral controversas interferissem no debate político. Sandel não aceitava isso e escreveu sua tese de doutorado para tentar refutar Rawls. A tese virou o livro Liberalismo e os Limites da Justiça, que completa 30 anos em 2012. E abriu o caminho para que Sandel fosse lecionar em Harvard.

Quando Rawls morreu, em 2002, os dois haviam sido colegas de universidade por quase duas décadas. E Sandel escreveu um obituário contando como havia sido bem recebido por Rawls, de quem se tornou amigo. Apesar da longa amizade, Sandel continuou sempre sendo um “comunitarista”, e achando que a história de uma sociedade pode, sim, ter peso nas decisões de como ela será governada.

Na entrevista abaixo, Sandel fala desse e de outros assuntos. Confira:

O senhor é um caso raro de filósofo “popular”. Sua vinda ao Brasil é parte de uma turnê mundial de seu novo livro. Seu estilo de buscar sempre exemplos para tudo o que fala pode ser parte importante dessa popularidade?

Sim, eu acredito que é. É verdade que a filosofia lida com ideias abstratas. Ideias como o sentido da justiça e a natureza da boa vida, ideias sobre liberdade, política e democracia. Mas, para mim, parte do que torna a filosofia política excitante é conectar as ideias abstratas dos filósofos com o mundo real, com os dilemas morais que nós enfrentamos todos os dias como cidadãos e nas nossas vidas cotidianas. Meus dois últimos livros, Justiça e O Que o Dinheiro Não Pode Comprar? tentam conectar essas ideias filosóficas com os debates e com os dilemas éticos com que todos nós, não só os acadêmicos, nos confrontamos. Eu tento fazer o que se poderia chamar de “filosofia pública”.

Em seu novo livro, o senhor afirma que o fato de a economia dominar as discussões políticas empobrece nosso modo de ver o mundo. O fato de economistas como Paul Krugman e Thomas Friedman estarem entre os principais comentaristas políticos dos EUA é um sintoma?

Sem citar especificamente qualquer colunista político [risos] – alguns são meus amigos – eu acredito que em anos recentes a economia sobrepujou a política em muitas das nossas sociedades. E nós caímos na presunção de que a democracia é apenas uma questão de gestão econômica, de eficiência econômica. Eu acredito que isso é um erro. Isso negligencia outras questões sobre o bem comum e levou a uma grande frustração dos cidadãos em relação à política democrática, aos partidos políticos estabelecidos. Eu vi em muitos países que visito uma grande frustração com o discurso político existente e acho que isso tem relação com os termos do discurso político. Eu acredito que isso tem a ver com o domínio do discurso econômico e com a exclusão de valores da política e de engajamento com questões do bem comum. Um dos meus objetivos ao escrever é tentar redirecionar energia e atenção ao papel dos valores na política e para a consideração do bem comum.

Os liberais afirmam que colocar valores em uma discussão política sempre aumenta o risco de uma “tirania da maioria” sobre as minorias. O senhor concorda?

Sim, eu concordo que colocar valores na discussão política sempre envolve o risco de criar a tirania da maioria, e nunca existe nenhuma garantia de que a maioria esteja certa. Ela pode impor valores à minoria que são injustificados. Esse é um risco de qualquer política que inclua valores. A questão é: qual é a alternativa? Alguns dirão que a alternativa é tentar deixar questões controversas que digam respeito a valores, considerações morais e espirituais de fora da discussão pública. E eu tenho sido crítico em relação a essa visão sobre a política. Eu entendo o impulso de deixar essas questões de fora do discurso público, mas acredito que isso é um erro. E a razão pela qual eu acho que isso é um erro é que eu não acredito que seja possível ou desejável definir direitos fundamentais dos cidadãos e decidir questões políticas importantes de uma maneira que seja neutra em relação a valores. Existe um segundo motivo para considerar essa visão errada. O primeiro motivo é filosófico. O segundo é uma questão de interpretação política. Eu acredito que a tentativa de pedir aos cidadãos que deixem de fora da política convicções morais e espirituais levou a uma política vazia. Leva ou a uma política tecnocrática que não inspira ninguém ou cria um vácuo moral, um vazio, que tende a ser preenchido por pessoas intolerantes, por pessoas que impõem visões morais estreitas a todos os outros. Porque mais cedo ou mais tarde as pessoas querem que a vida pública e a política tenham significado mais amplo. E se você tenta esvaziar a política de significado moral o resultado não será um ponto de vista neutro. Será um vácuo moral que será preenchido por vozes intolerantes e fundamentalistas. E há um terceiro motivo, que está ligado ao novo livro. O que acontece quando você esvazia a política de sentido moral é que você deixa que as forças de mercado decidam a maior parte das questões de nossa sociedade. E as forças do mercado governam. Isso não é neutralidade. É simplesmente dar poder às forças de mercado para tomar decisões muitas vezes lamentáveis, já que os cidadãos não são mais capazes de participar de um debate com maior significado. Por isso eu acredito que uma das razões para que nossas sociedades tenham sido dominadas pelo pensamento de mercado e pelos valores de mercado é que nós não tivemos um debate público moral.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, tem defendido o casamento entre homossexuais. E o governo permitiu que haja gays assumidos no Exército. Essas são vitórias do liberalismo nos EUA?

Eu acho que é possível dizer que é uma vitória de uma visão mais generosa da vida social e da vida familiar, e nesse sentido uma visão mais generosa da vida cívica, com a qual eu concordo. O liberalismo tem muitos significados diferentes. É uma vitória do liberalismo no que diz respeito a uma visão mais generosa da vida pública e de uma apreciação maior do pluralismo como uma ideia moral. Eu não diria que é uma vitória do liberalismo no sentido que estávamos falando antes, de neutralidade filosófica. Porque o que está por trás da política de maior inclusão e respeito dos gays no Exército, na sociedade e na família é uma certa visão da boa vida. Não é apenas a ideia de neutralidade.

No Brasil está havendo discussões semelhantes, que dependem da neutralidade do Estado, falando, por exemplo, sobre a retirada de crucifixos de instituições públicas. Como o senhor vê isso?

Eu considero essa uma questão muito difícil porque tem a ver com os símbolos que devem estar presentes na vida pública, nas instituições públicas. E símbolos têm significados. E a discussão que você está descrevendo é quase que inevitável uma vez que você aceita a ideia de que valores morais e espirituais têm importância para a vida cívica. Eu não estou próximo o suficiente do debate, como um estrangeiro. Eu penso que temos controvérsias semelhantes nos Estados Unidos, como no caso do dólar que diz “Em Deus nós confiamos”. Algumas pessoas levantaram objeções a isso. Na Europa houve debates…

Sobre o véu islâmico, por exemplo?

Exatamente. E esses debates têm de ser negociados por cada sociedade, porque eles são debates sobre a caracterização do espaço público. Eu, pessoalmente, sou muito a favor do pluralismo no espaço público, o que não necessariamente é a mesma coisa que neutralidade, porque deixa a possibilidade de incluir valores simbólicos no espaço público. Mas eu não tenho uma resposta para o dilema brasileiro, a não ser perceber que é uma controvérsia que tem similares igualmente difíceis em todo o mundo, em sociedades multiculturais, pluralistas, que estão lutando para descobrir uma maneira de dar expressão à identidade coletiva em público.

Diversos filósofos da moral e da política têm se debatido com a questão de achar bases para os direitos humanos em uma sociedade laica. Qual seria uma solução possível?

Essa é uma pergunta difícil. Eu não estou certo de que a melhor e mais poderosa base para os direitos humanos seja evitar as convicções metafísicas e religiosas. Há duas abordagens filosóficas para os direitos humanos. Uma delas é tentar deixar de lado todas as diferenças morais e espirituais entre nós e tentar identificar um denominador comum de valores que possam ser as bases para os direitos humanos. Você pode chamar essa de “abordagem cosmopolita”. A segunda abordagem seria procurar encorajar pessoas de diferentes tradições nacionais, culturais, religiosas a criar um diálogo entre elas sobre respeito aos direitos humanos, à dignidade humana. Um diálogo que cresça a partir das diferenças culturais, nacionais e religiosas que essas pessoas trazem para o debate, e não que as deixe de lado. Essa segunda abordagem pode ser chamada de abordagem “discursiva” ou “pluralista”. Essa é a que eu prefiro. Eu acredito que podemos fazer mais progresso trabalhando uma ética de respeito de direitos humanos que aceite o pluralismo, as diferentes fontes de diferentes tradições morais e culturais, deliberando juntos, reconhecendo as diferenças culturais, aprendendo sobre as tradições culturais, morais e religiosas diferentes que as pessoas do mundo trazem para o debate. E aceitando o pluralismo dessas tradições ao invés de procurar um denominador comum que pode ser tão abstrato que seria incontroverso, mas também não seria convincente, não teria apelo. Porque, no fim das contas, todo regime de direitos humanos tem de inspirar as pessoas a aderir a ele. E não há nada muito inspirador em um denominador comum abstrato muito tênue que abstraia as convicções pessoais.

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