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Livro da semana – “Cem anos de solidão”
| Foto:
Rodrigo Arangua/AFP
García Marquez ergue uma cópia de seu livro mais famoso: personagens fantásticos em um mundo sombrio

Nunca a primeira frase de um livro me pegou como a de “Cem anos de solidão”. “Muitos anos depois, frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía recordaria aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”.

Há toda uma história nessa frase: um pai que leva o filho nos trópicos para conhecer o gelo. Um homem que cresce e se torna militar. Mais que militar, coronel. Um coronel que de alguma maneira se vê condenado à morte. E que, condenado à morte, em frente aos que vão fuzilá-lo, rapidamente une as duas pontas da vida retomando sua primeira infância.

Sabe aquela história de que na hora da morte a pessoa vê sua vida passar “diante dos olhos, como num filme”. García Márquez faz com que a vida do coronel passe na frente de nosso olhos, e realmente dura apenas um instante. Mas logo virá mais.

Porque a frase diz muito, mas diz quase nada. E é preciso aos poucos ir preenchendo as lacunas. Você agora quer saber quem é esse homem, porque ele parou alie como se desfechará a cena: ele morre, afinal? Ou é só o começo da história dele.

O primeiro e talvez fundamental mérito de “Cem anos” é esse: o texto que te faz querer mais o tempo todo. Como bom narrador, García Márquez quer contar fatos. E quer que você fique atento a eles. E consegue isso com uma suavidade impressionante.

O texto é realmente fluido, a história realmente funciona, e é quase como se você não visse os fiozinhos que mexem as marionetes da trama. O caminho do livro, em certo sentido, é tradicional: quer uma leitura agradável.

Mas se fosse só isso o livro seria um best-seller e nada mais. Teria provavelmente vendido os mesmos 30 milhões de cópias que vendeu, sendo traduzido para 35 idiomas. Mas não seria o que é: um clássico. E se virou clássico foi por ser mais ambicioso, por não querer apenas retratar a história de uma família latino-americana ao longo de um século. O livro quer muito mais: quer ser um espelho da própria América Latina. De todos nós que vivemos nela.

A história do livro é mais ou menos conhecida: uma família fundadora de uma pequena cidade, a sensacional Macondo, tem de conviver com os problemas do Continente (pobreza, revoluções, a natureza indomada) e com o caráter dos próprios personagens (turrões, exageradamente românticos e eles próprios igualmente indomados) por várias gerações.

Os nomes se repetem, os defeitos e virtudes também e a roda da fortuna vai levando os Buendía a algum lugar que o leitor quer sempre saber aonde é.

Mais famosa que a trama, porém, é o realismo mágico que marca a obra. O realismo fica por conta da ausência de ilusões do autor em relação ao que está pintando. Embora seja obviamente simpático aos conterrâneos, García Márquez tenta nos mostrar como somos, sem criar Cecis e Peris irreais mas retratando nossos defeitos assim como nossos pontos positivos.

A magia é o outro lado da moeda: é o filtro que ele coloca na lente e que exagera mil vezes as coisas para que possamos percebê-las melhor.

O exemplo que mais me marcou na história é o de Remédios a Bela. A menina nasce e desde cedo impressiona pela beleza, pela leveza, pela sua personalidade tranquila, incapaz de maldade: andava nua, desprezava o erotismo dos homens que a queriam e, um dia, simplesmente, sem mais, como se fosse completamente natural para alguém como ela, sobe aos céus. Em carne e osso.

A literatura do século vinte em todo o mundo foi pródiga em autores que mudam o mundo de alguma maneira, tornando-o “fantástico”. Indo de Kafka a Borges, a tendência vigora até hoje, talvez. Mas a magia de García Márquez é diferente do realismo fantástico de Borges ou o mundo de caos inexplicável de Kafka.

A pergunta que Kafka parece querer responder com seus textos em que a lógica normal dá lugar a outra coisa é: “o que a humanidade está fazendo consigo mesma?”

A pergunta de Borges é outra: “que regras dominam esse mundo que um Deus ou um demiurgo criou para nós?”

García Márquez tem outra questão em mente, e bem diferente: “afinal, quem somos nós e como podemos ser tão variadamente curiosos em temperamento e ação?”

A ideia não é nem a do caos nem a de descobrir uma ordem. Mas é a do antropólogo fascinado com uma cultura, com uma gente e que quer pintá-la. Vendo um novo mundo, a América, não consegue nem sequer imaginá-la com as cores típicas usadas na Europa, e tem de achar novas para fazer seu trabalho.

García Márquez é um sucessor de Vespucio, de Caminha, de Debret. Um novo olhar sobre um novo mundo. Mas, por ser mais próximo de nós, por ser um de nós, por ter convivido com revoltas liberais feitas por conservadores, por ter visto o machismo de bombachas criar uma outra mulher ainda, por ter convivido com a inexplicável teimosia latina, foi capaz de nos pintar de um modo ainda mais preciso, embora sui generis.

“Cem anos de solidão” é um retrato de família. Da nossa família. E não é ótimo ver retratos antigos para ver de onde foi que a gente saiu?

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