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Autista é Deficiente?
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Perdi as contas ao certo de quantas vezes, na função de advogada, ao falar de direitos de crianças com autismo, expliquei sobre o fato da Lei do Deficiente ser aplicável à pessoa com transtorno do espectro autista. Sempre falo disso com bastante naturalidade, porém, confesso que no dia em que escrevi o requerimento de tramitação prioritária para o processo judicial de minha filha contra o plano de saúde (requerendo custeio de diversos tratamentos), fundamentando tratar-se de criança deficiente, prendi minha respiração.

Minha filha, deficiente? Embora eu soubesse que ela enquadrava-se na lei como deficiente por ser autista, eu simplesmente não conseguia enxergá-la dessa forma.  E assim surgiu um dos maiores dilemas que passei como mãe: o autismo de minha filha é uma doença, uma deficiência ou apenas uma maneira diferente de ver o mundo? Para responder minha pergunta e entender minha pequena e a mim mesma, tive que fazer uma verdadeira viagem que passou pela doutrina médica, pelo meu dia-a-dia e terminou, em desembarque final, na subjetividade que é o amar.

Autismo é conceituado como uma condição geral para um grupo de desordens complexas do desenvolvimento do cérebro.      Para uma criança ou adolescente ser enquadrado no espectro autista pelos médicos deve preencher ao menos três critérios: déficits clinicamente significativos e persistentes na comunicação social e nas interações sociais; déficits expressivos na comunicação não verbal e verbal usadas para interação social; padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades.

Assim, tenho certeza que quase todas as pessoas que observassem a descrição científica de autismo afirmariam categoricamente “é uma grave doença” e “sem dúvida trata-se de deficiência”. QUASE todas! Não uma mãe ou um pai de uma criança autista. Estes, apesar de entenderem o conceito médico e conhecerem – mais que ninguém – as dificuldades sociais e aquela mania incessante de enfileirar, girar ou falar frases de desenho animado, muitas vezes não fazem uma ligação direta entre autismo e doença, autismo e deficiência. Para nós, pais ou mães de crianças e adolescentes com autismo fica mais fácil entender nossos filhos pela visão de que eles têm uma maneira toda especial de ver o mundo.

Eu me sentia assim. E também sentia que era a única no mundo para quem o autismo não era uma doença nem uma deficiência, e nesse meu achar me sentia muito sozinha. Não entendia como muitas pessoas não conseguiam ver beleza na maneira da criança autista encarar o mundo, não se emocionavam com sua sinceridade, não percebiam a preciosidade daquele raro olhar do autista encontrar nossos olhos tão singelamente normais. E todo esse meu sentimento se punha em conflito com minha razão quando me debruçava a estudar sobre o autismo.

Numa noite, desenhando com minha filha, olhei-a por um instante e ela retribuiu meu olhar, voltando a desenhar logo em seguida. E, como se levadas por uma brisa, minhas dúvidas sobre esse tema se foram, e consegui compreender melhor meu dilema e o contexto que me cercava.

Pessoas com autismo possuem, sim, uma dificuldade social, verbal e de conhecer coisas novas, e isso é um grande obstáculo para conseguir ter uma vida independente e em sociedade. Essas características são parte de um transtorno, e são, juntas, uma deficiência. Esses comportamentos precisam ser tratados para que a criança com autismo venha a ter uma vida mais plena, mais independente e mais feliz. As barreiras que uma pessoa autista enfrenta fazem jus a que ela seja beneficiária dos direitos de pessoas com deficiência, porque verdadeiramente é uma dessas pessoas.

Por outro lado, junto a essa tal deficiência, a pessoa com autismo tem a sorte de encarar uma maneira toda própria de ver o mundo. Elas pensam diferente de nós, concebem a realidade por outro ângulo, e não seria mentira dizer que as pessoas ditas típicas precisam de olhos de autistas na ciência, artes, linguagens e todas e todas as áreas. Autista é deficiente por um ângulo e privilegiado por outros, pois sua maneira de pensar a realidade de um modo todo especial o engrandece.

Do autista mais leve ao mais “clássico” (grave) há algo de especial. Tente por um dia acompanhar seus movimentos, seus interesses, seu modo de se comportar e garanto que você será prestigiado por uma maneira diferente de ver a vida. Isso não significa que não devamos auxiliar nossos pequenos a vencer suas barreiras, fornecendo todo tratamento adequado. Existirão comportamentos que necessitarão ser trabalhados por profissionais habilitados, mas o transtorno do espectro autista também traz consigo um novo olhar, que é da natureza desses incríveis anjos azuis e que os acompanhará por toda a vida.

Esse texto poderia acabar aqui, mas passaria a ideia errada. Ficaria dito que o autista é deficiente, mas tem características que faltam naqueles considerados pessoas “normais”, e não é exatamente isso. Não se trata de um “mas”, um “porém” ou um “entretanto”. A questão aqui é que, ao pensarmos em deficiência, temos como ponto de partida a pessoa típica, porque construímos nossa sociedade pensada nessa tal tipicidade. Mas, a partir desse prisma, tão preto e branco, acabamos esquecendo que cada pessoa, autista ou não, é única e contribui em nosso mundo com uma forma específica de interpretar o que a rodeia.

Apenas no dia em que enxergarmos com os olhos daqueles considerados diferentes, entenderemos que deficiência é um conceito que apenas tem sentido com base no padrão, e tudo o que esse mundo – que anda tão cruel e injusto – precisa é justamente de ideias e conceitos fora do padrão.

Minha filha tem autismo, é “deficiente”e sofre de um transtorno incurável, e isso não muda o fato de que o mundo tem muito a aprender com ela, assim como tem muito a aprender com o seu filho. Por outro lado, precisamos fornecer os tratamentos necessários para as crianças autistas terem as ferramentas essenciais para conviver com você e todas as pessoas que as cercam. A deficiência é um ponto de vista do típico, mas para aquela pessoa considerada atípica, talvez várias características de nossa tipicidade e nossa incapacidade de pensar de forma mais inclusiva é que sejam uma deficiência.

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