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Fornecida por Google imagens - sem restrição de uso| Foto:
Charles Chaplin (imagem fornecida pelo Google imagens sem restrição de uso)

Charles Chaplin (imagem fornecida pelo Google imagens sem restrição de uso)

Não saio muito à noite. Em geral, minha balada é colocar as crianças para dormir. Mas, atipicamente, semana passada eu fui assistir a um show de comédia de meu marido em um bar (afinal, ninguém é de ferro). Cheguei ao bar, já um pouco cansada, e quando o garçom me perguntou o que eu desejava, minha vontade era responder “um chá de camomila, um travesseiro, e uma massagem nas costas”. Prevendo que uma resposta como essa poderia gerar confusão mental nos presentes, optei por uma cerveja.

Vinte minutos, cinco goles e três bocejadas depois, me rendi ao ridículo de, escondida, perguntar ao garçom se eles tinham café expresso. Não tinham. Rendi-me a esperar o show com uma Coca-Cola, rezando para a pouca cafeína do refrigerante fazer algum efeito. Conversava com os colegas comediantes de meu marido e, apesar do sono, o papo estava divertido.

Eis se não quando (e é justamente o “eis se não” que gera a maioria de minhas reflexões), um dos comediantes começa a relatar sobre “saias justas” que passou com a plateia: o bêbado que interrompeu o show, a mesa que não parava de conversar e levou bronca, a vez que fez uma piada com síndrome de Down e a mãe de uma menina com Down ficou ofendida. E nessa última história meu estômago começou a revirar.

Ele contou a piada, e, honestamente, a piada era ruim. Independente se ofende ou não, o primeiro ponto é que a piada por si só não tinha graça. Mas será que fazer piadas com deficientes é sempre um absurdo? Será que as piadas com crianças deficientes deveriam ser abolidas? Será que deficiência nunca deve ser motivo de piada?

Acho que o que todo mundo espera de mim é que eu diga que toda piada com pessoas deficientes deve ser abolida! Mas, honestamente, acho que a gente deve fazer piada com tudo e de tudo. Espera! Calma! Antes de se indignar com o que digo, deixe-me explicar!

O problema não é a piada mencionar a condição física da pessoa. Quem já não riu com o Geraldo Magela fazendo piada com sua condição de cego? Esses dias eu entrei em uma panificadora e, pagando sua conta no caixa, havia um cego. Eis que o caixa disse: “Passei duas vezes o creme de leite. Poxa, você poderia ter visto e me avisado”. O rapaz cego riu muito. Noutra vez, vi uma moça paraplégica dizer para o namorado: “Se você disser mais uma vez que a Aline Moraes é bonita eu dou um jeito de levantar para te bater”. Ambos riram e se beijaram, apaixonados.

Nossas limitações podem ser motivo de riso, pois rir deixa a vida mais leve, mais livre. Encontrar em nós mesmos e em quem amamos motivos para piada é uma maneira de amar mais, se aceitar mais e aceitar o outro mais. Dizer que nunca se pode fazer piada com deficiente é tratá-lo como alguém à margem da sociedade, afinal, fazemos piada com todas as limitações das pessoas típicas.

Agora, outra coisa é fazer piada depreciativa ou ofensiva com deficiente, o que a meu ver é uma crueldade e uma falta de empatia. O que mais me espantou é que o comediante contava como se fosse super engraçada a reação da mãe da criança de sentir-se ofendida, que a cara dela depois da piada era “muito boa”. Não vejo qual o prazer em causar sofrimento alheio.

Enquanto ele contava a história, meu sono passava, meu sangue subia. Um anjinho em meu obro esquerdo falava “Calma, Hanna. Tolerância!”, enquanto no direito um diabinho gritava “Vai na jugular dele! Com os dentes!”. Ou será que era o contrário? Enfim, o incômodo passou a ser palpável. Sentia em todo o meu corpo o desconforto pelo que meus ouvidos eram obrigados a reconhecer. Tentando conter minha ira, disse: “é porque a filha não era sua!”. Ao que fui retrucada com uma bufada acompanhada de olhos revirados. Não me contive e disse: “falo isso porque minha filha é autista”.

O comediante ficou sem graça imediatamente. Olhou-me e disse que autismo não é deficiência. É incrível como, para algumas pessoas, toda e qualquer dificuldade tem que ser visível. Autismo não está na cara, não pode ser visto, então, para muitos, é como se não existisse. Mas existe, é real e faz parte de nossa sociedade. Tramitam em todos os lugares sem ter suas necessidades especiais reconhecidas ou entendidas, invisíveis como os anjos. Talvez por isso sejam tão chamados de anjos azuis.

Autista sofre com uma deficiência: a deficiência da sociedade em saber lidar com o diferente, em respeitar o alheio. Autista sofre com uma doença: a doença da alma de tantos homens que os cercam, insensíveis à realidade que permeia. De resto, o autista não sofre em ser o que é, porque carrega em si a pureza de criar a beleza de seu mundo à sua forma. Talvez crianças autistas, crianças com síndrome de Down, crianças com paralisia cerebral não sejam deficientes, mas deficiente seja nossa “normalidade” tão insensível e cruel.

Piadas sobre Deficientes… Piadas sobre Síndrome de Down… Piadas sobre Autistas… Qual o limite do humor? Talvez essa não seja a questão. Talvez a questão seja o limite de nossa humanidade. Será humano achar graça no sofrimento alheio? Será que humanos estão perdendo sua humanidade?

Rir de nós mesmos, rir de quem e com quem amamos. Talvez essa seja uma forma de uma vida bem humorada, divertida e leve. Aceitar que somos falíveis, que somos imperfeitos, que somos todos diferentes. Rir de tudo, com riso aberto. Sorrir, mesmo quando a vontade é chorar. Sorrir, simplesmente sorrir. Acho que a verdadeira graça e verdadeira comédia é aquela que nos deixa tão sublimes que nos tornamos incapazes de achar graça na dor alheia.

Não devemos nos fechar para o humor, para o sorriso. Não devemos nos tornar pessoas mal- humoradas e incapazes de achar graça – porque a graça está em tudo. Mas é inaceitável permitir que nossas crianças sejam ofendidas, depreciadas. A incapacidade de compreender o diferente não pode ser motivo de preconceito. O humor é livre; mas humor não pode se confundir com maldade. A liberdade de expressar sua arte é um direito fundamental, mas que deve se subjugar à dignidade da pessoa humana.

Para os autistas, é bem possível que nossa normalidade, nosso apego às condutas sociais, nossa forma tão simplória de ver o mundo sejam motivo para piadas e depreciação. Para pessoas com síndrome de Down, talvez nossos olhos tão redondos e sem graça é que sejam motivos para chacotas. Mas eles não nos humilham por nossa tipicidade tão simplória. Nós aqui, tendo que discutir sobre piadas depreciativas, eles acima disso. Talvez aquele humorista tenha razão em uma coisa: autista não é deficiente – nós (os “típicos”) é que somos. Até porque apenas nós dividimos o mundo entre “nós” e “eles”, enquanto eles encaram a vida em sua totalidade.

Não me orgulho em dizer que precisei vivenciar uma situação dessas para que eu formasse as opiniões trazidas nesse texto. Todavia, nunca é tarde para refletir. Ainda acho que sorrir é o melhor remédio, e fazer os outros rirem é uma arte. Mas, para o riso de alguns não vale o sofrimento e depreciação de outros. Apesar de tudo, como já diz a música: “Smile, though your heart is aching/ Smile, even though it’s breaking/ When there/ are clouds in the sky/ You’ll get by/ If you smile/ With your fear and sorrow/ Smile and maybe tomorrow/You’ll see the sun come shining through, for you.” (Charles Chaplin)

Grande beijo

“That’s the time you must keep on trying

Smile, what’s the use of crying?

You’ll find that life is still worthwhile

If you’ll just smile” (Charles Chaplin)

 

Este é o momento que você tem que continuar tentando

Sorria, de que adianta chorar?

Você descobrirá que a vida ainda vale a pena

Se você apenas sorrir” (tradução livre)

 

 

 

 

 

 

 

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