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Carta ao avô: um abraço de recordações
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Arquivo pessoal
O abraço de que sinto falta: eu, Vô André e meu irmão (Guilherme).

Eu quero escrever algo ao senhor. Mas não sei se consigo. Quando o senhor partiu, eu tinha quinze anos. Quase quinze anos depois, tudo o que tenho são sentimentos, que não falam, calam fundo. Faltam-me as palavras certas. Talvez elas nem existam. O senhor resolveria o impasse com um abraço forte. Como eu gostaria de fazer o mesmo. Mas não posso. Não ainda. Dizem que recordar é viver. Infelizmente, não é. Mas é o que tenho. Tento abraçá-lo com recordações. Recordo…

…os beliscões que o senhor dava nas solas dos meus pés, com suas unhas fortes, quando eu estava deitado, pronto para dormir. Era sua forma carinhosa (um pouco dolorida, mas carinhosa) de desejar boa-noite. Hoje, noto que, como o senhor, eu não tenho um bom controle da minha força, mesmo quando quero ser carinhoso. Para sorte dos meus filhos e netos, tenho as unhas fracas;

…a sua habilidade ímpar de negociar (acho que o senhor teria conseguido a paz no Oriente Médio, se fosse chamado a negociá-la), demonstrada em grandes empreendimentos e pequenas transações, como quando íamos comprar novos óculos para mim e para o meu irmão – vivíamos os quebrando. Ainda não entendo direito aquela dinâmica de negociação, que sempre terminava com o senhor conseguindo reduzir os preços à metade – não sem antes ameaçar ir embora da loja e nunca mais voltar. Hoje, se eu faço isso, saio de mãos abanando e ainda pago mais caro na loja ao lado;

…as vezes em que o senhor ia nos buscar na catequese, e ficava nos esperando no bar atrás da igreja. Para que não contássemos em casa sobre suas escapadas gastronômicas, com petiscos gordurosos e cerveja gelada, o senhor comprava o nosso silêncio com pastel e refrigerante. Hoje, eu não aceitaria a proposta e cuidaria mais da sua saúde (e da minha). Na época, o senhor me parecia indestrutível – e o pastel, irresistível. Perdoe-me pela fraqueza;

…as vezes em que o senhor nos levava para a aula. Acordava muito antes de nós, tomava café e ficava nos esperando na camionete, ouvindo música caipira em alto volume, para nosso desespero. Nós pedíamos que desligasse o som antes de chegarmos à escola, mas o senhor só resmungava e aumentava o volume. E nós ficávamos sentindo uma vergonha besta, da qual até hoje sinto vergonha. Que saudade daquelas músicas, da camionete de bancos encardidos, dos seus resmungos;

…o orgulho que sentia ao passear com o senhor (quando a música caipira estava desligada) pela cidade. Eu me sentia junto do prefeito, do governador, do presidente, pois todos o reconheciam, o cumprimentavam. O senhor acenava de volta, sorrindo e desejando bons-dias, boas-tardes e boas-noites a todos. Depois, quando eu perguntava quem era aquela pessoa que o havia cumprimentado, o senhor invariavelmente respondia, rindo: “não sei, foi ela quem me cumprimentou”. No fundo, não importa mesmo saber quem era. O que importa é que o senhor mereceu cada um dos acenos, dos cumprimentos, dos sorrisos.

Essas são algumas das recordações que tenho do senhor, meu avô. As que consigo traduzir. Escritas, são apenas palavras. Não expressam todo o sentimento que há por trás de cada uma delas, todo o amor, toda a gratidão e toda a saudade. Tome-as, contudo, por um forte abraço, que fica reservado. Algum dia eu o entrego pessoalmente, quando não precisar mais de palavras.

***

Peço licença aos leitores para publicar algo tão pessoal. Hoje, meu avô materno, José da Silva André (a quem dedico esse texto), completaria 85 anos – faleceu em 1997. Eu e meu irmão crescemos na casa dele, em Cascavel, onde fomos morar com nossa mãe, depois que ela ficou tetraplégica por conta de um acidente de carro. Nosso pai trabalhava em Curitiba e só conseguia nos visitar nos finais de semana. Assim, tínhamos no saudoso Vô André, verdadeiramente, um pai em dobro. Foram tempos tão difíceis quanto felizes. Mas a história é longa, fica para outra hora. A saudade é enorme e fica por agora.

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