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O tornozelo quebrado no treino do Coritiba e os machucados causados pelos carrinhos da vida
| Foto:
Antônio More/Gazeta do Povo
Carrinho de Lincoln em Bottinelli pode ter lesionado seriamente o argentino

É triste ver alguém se machucar. Não importa se é o pai, o vizinho, o pedestre desconhecido ou o jogador do time adversário. A dor de um vivente dói na gente. Senti dor ao ver a imagem do Dario Bottinelli, jogador argentino do Coritiba, quebrando o tornozelo em uma disputa de bola com seu colega de clube, o Lincoln, durante um treino. O registro, em termos de fotojornalismo, é excelente – meus votos de congratulações ao fotógrafo Antônio More, da Gazeta do Povo. A cena, em termos de sensibilidade humana, é horrível – meus votos de pronta recuperação ao Bottinelli.

Porém, o que chama mais a atenção no caso não é o esperado sofrimento do agredido, mas a dor do agressor: quando percebeu a gravidade do ferimento que causou em seu companheiro de time, Lincoln sentiu o baque, divulgou uma nota oficial afirmando se tratar do “incidente mais triste” de sua carreira, visitou o Bottinelli no hospital, pediu-lhe desculpas, chegou a pensar em não jogar no dia seguinte. Mais ainda, chama a atenção o julgamento dos carrascos de plantão sobre o Lincoln: houve até gente dizendo que o jogador teve intenção de machucar seu colega. Menos, muito menos. O Lincoln pode ter sido imprudente ao disputar a bola com tanta rispidez em um treino, mas não cabe julgar seu caráter por um lance de futebol. Por outro lado, talvez seja necessário treinar com vigor; afinal, o adversário não costuma ser gentil em disputas de bola. Aliás, se o jogador treinasse de maneira diferente, os corneteiros o acusariam de fazer “corpo mole”. Mole é julgar os outros.

Noventa e noves fora, uma coisa é certa: nos campos da vida, não é incomum machucarmos alguém, não raramente pessoas próximas a nós. Basta um lance. Em quantas ocasiões, com palavras, atos ou mesmo omissões, damos carrinhos violentos, irrefletidamente? Às vezes, nem percebemos que escorregamos desembestados com as travas das chuteiras em direção ao tornozelo de alguém. Há tempos, por exemplo, publiquei algo no Facebook que atingiu um casal de amigos queridos. Fiz quase de brincadeira, uma indiretazinha provocativa sobre uma controvérsia de opiniões. Escrevi apenas uma frase, sem qualquer palavra de baixo calão, sem qualquer referência a eles, nada radical, nada agressivo: uma entrada talvez firme, mas leal, sem maldade, numa disputa de bola, visando à esfera do debate amigável, não ao tornozelo da convicção inquestionável. Eles tomaram o meu comentário como uma injustificável e violenta agressão pessoal. Fui dar na bola. Sem querer, acertei o tornozelo.

Como escreveu o Lincoln em sua nota sobre a contusão do Bottinelli, aquele foi o “incidente mais triste de toda a minha carreira” nas redes sociais. A amizade foi parar no hospital dos relacionamentos. Faço minhas as palavras do Lincoln: “Ali, no calor do momento, nunca pensamos no pior, já que não conseguimos ter a mínima noção do que realmente aconteceu. Já vi jogadas mais ríspidas e fortes do que essa em que, apesar da dor no instante da pancada, o jogador teve condições de voltar a campo e se movimentar normalmente. Nesse caso, por uma infelicidade tremenda, não foi o que aconteceu (…). Não sou e nunca fui um jogador violento, muito pelo contrário. Contudo, o sentimento de remorso bate forte nessas horas”. Como o jogador do Coritiba, fiquei “muito triste e abatido com toda essa situação, pois em momento algum quis machucá-lo(s)”, tentei pedir desculpas ao casal atingido, passei um tempo longe dos campos virtuais, mas até hoje a fratura que causei não sarou e eu, o agressor, sou quem claudica e sente dor.

No fundo, somos todos jogadores nos campos da vida e temos que jogar com vontade, sem medo das divididas, mas com prudência e lealdade. Se, mesmo assim, alguém se machucar, o que acontece, a regra do bom jogo é clara: pedem-se desculpas, assumem-se as consequências dos atos, aprendem-se as lições. Quando a ferida não cicatriza, não há banco de reservas onde se refugiar: com ou sem dor, é bola pra frente.

***

P.S.: Acabo de ver que, na Gazeta do Povo de hoje, o colunista Leonardo Mendes Jr., muito mais letrado do que eu em matéria de futebol, faz análise sobre o caso Lincoln-Bottinelli. Recomendo a leitura.

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