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Quem recebe bolsa-família deve ter seu direito ao voto suspenso?
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Folheto-ACIPG (retirado do Blog Caixa Zero, de Rogério Galindo)

Folheto-ACIPG (retirado do Blog Caixa Zero, de Rogério Galindo)

Instalou-se debate inusitado nos últimos dias. De acordo com Rogério Galindo, em seu blog Caixa Zero na Gazeta do Povo, “a Associação Comercial e Industrial de Ponta Grossa (ACIPG) publicou uma cartilha defendendo que beneficiários do Bolsa-Família e de outros programas de transferência de renda governamentais tenham seu direito ao voto temporariamente suspenso”. A manifestação é polêmica e provoca reações extremas de pessoas que defendem a proposta e pessoas que não a defendem. Para evitar simplificações – como “a Constituição defende a dignidade da pessoa humana”, de um lado, e “tem que ensinar a pescar, e não dar o peixe”, de outro, farei uma análise serena do problema colocado. 

Pressupostos ao debate

Primeiro, a despeito de a proposta ser polêmica, a Associação tem direito a se manifestar. Pode dizer ser contra benefícios sociais (ou programas de renda mínima) e pode pedir o que bem desejar. Até mesmo propostas anacrônicas de limitação do sufrágio. Os leitores podem discordar, acusar de absurda a ideia, mas jamais poderão tolher a liberdade de manifestação do pensamento.

Segundo, é preciso definir o que são os programas de renda mínima (ou chamados de imposto de renda negativo). São programas governamentais criados para redistribuição de renda e para sustentação de condições de vida.  O programa brasileiro atual foi criado pela Lei 10.836/2004 (Programa Bolsa Família, destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades), regulamentado pelo Decreto 5.209/2004.

Sinteticamente, há as seguintes disposições sobre o benefício (Decreto 5.209/2004):

Art. 18.  O Programa Bolsa Família atenderá às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, caracterizadas pela renda familiar mensal per capita de até R$ 154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) e R$ 77,00 (setenta e sete reais), respectivamente.

(…)

Art. 19.  Constituem benefícios financeiros do Programa Bolsa Família:

I – benefício básico, no valor mensal de R$ 77,00 (setenta e sete reais), destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de extrema pobreza; 

II – benefício variável, no valor mensal de R$ 35,00 (trinta e cinco reais) por beneficiário, até o limite de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais) por família, destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de pobreza ou extrema pobreza (…)

E continua com outros benefícios em valores semelhantes. Não entrarei em detalhes, pois não é o objeto da análise.

Terceiro, abordarei, adiante, o nexo causal entre o voto (a escolha) e o benefício social. Não importará opinião favorável ou contrária ao benefício. A questão é: o benefício social pode ensejar limitação de direito ao sufrágio, por supostamente interferir na escolha democrática? [Observação: sou favorável ao programa de renda mínima brasileiro – existente desde 2001, aliás –, mesmo não sendo estatista, mesmo tendendo ao liberalismo e ao mercado (antes que me atirem pedras, Hayek e Friedman já defenderam programas de renda mínima)].

Vistos esses pressupostos, sigo à análise da questão colocada. 

Alguns preferem que o Estado se abstenha de interferir na vida privada, na economia, na sociedade. Algo como Estado guarda-noturno. Outros, preferem o Estado atuante, como o vetor de transformações sociais e responsável por manter o bem-estar. Em outras palavras, alguns preferem menos benefícios fornecidos pelo Estado, outros, mais benefícios. Aqueles visam a reduzir a redistribuição da renda, estes, a majorar. Tudo bem, é uma exposição demasiadamente simplista, mas pode auxiliar o debate.

Independentemente da opinião professada, certo é que a Constituição da República expõe alguns deveres do Estado. Não importará, por exemplo, ser contrário, genericamente, ao programa de saúde pública, pois presente está no texto constitucional (mude a Constituição e, então, a conversa será outra). Temos, pois, a seguinte norma (dentre outras) na Constituição de 1988:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para alcançar o intento acima, o governo pode adotar diversos mecanismos, todos de acordo com o restante do texto constitucional: benefícios fiscais (isenções não gerais, subsídios, renúncias de receita), programas sociais (saúde, educação), e programas de renda mínima (separei-os dos programas sociais apenas para ressaltá-los). Uma característica comum a todos eles é o caráter redistributivo. Assim o é, exemplificando, se um grupo de indivíduos recebe benefício fiscal para aquisição de imóveis, ou recebe subsídios (em despesas públicas) para compra de bens móveis importantes para a vida, ou recebe incentivos tributários para melhoria da atividade empresarial, ou paga uma tarifa de ônibus de valor fixo para viajar 20 quilômetros, enquanto outros viajam 2 quilômetros. Todos esses exemplos trazem a ideia de que alguns pagarão para que outros obtenham esses benefícios.

O programa bolsa-família não foge à lógica. Tem o mesmo caráter redistributivo, assim como redistribui renda a prestação de serviços públicos (saúde e educação – serviços gratuitos se prestados pelo Estado, diante da escolha constitucional de 1988). A diferença é o bem econômico a ser entregue (dinheiro, bens in natura, serviços). Contudo, a ideia é igual.

E mais: para as finanças públicas é desimportante se o benefício é concedido em forma de despesa pública (dinheiro que sai dos cofres públicos) ou em forma de renúncia de receita (dinheiro que deixa de entrar nos cofres públicos). O efeito é o mesmo. Para a contabilidade do Estado, conceder bolsa-família leva ao mesmo resultado que a isenção do IPI.

Portanto, devemos ser coerentes.

Voltemos a questão posta: benefícios sociais de renda mínima podem ensejar limitação de direito ao sufrágio, por supostamente interferir na escolha democrática? Antes de respondê-la, lanço outra pergunta: benefícios tributários concedidos a determinadas pessoas ou categorias ensejam limitação do sufrágio, por supostamente interferir na escolha democrática? Ora, a resposta será a mesma: não. Por óbvio, todas as pessoas escolhem seus representantes de acordo com os benefícios, diretos ou indiretos, que terão após as eleições. Alguns votam no candidato x devido a sua tendência liberal, tanto nas liberdades civis quanto econômicas (terão de pagar menos impostos); outros no y, porque promove benefícios sociais, tributários (alguns pagarão mais impostos). Faz parte da democracia. Eu, por exemplo, prefiro os que pregam um Estado menor, com menos despesas públicas, mais austero (mas reconheço a importância e necessidade de programas sociais).

Ao se defender a suspensão dos votos dos beneficiários de programas de renda mínima (bolsa família) – pois haveria influência na decisão do voto –, deve-se defender também a suspensão dos votos dos beneficiários de outros programas sociais e de renúncias de receita pública. Enfim, ao se pugnar pela limitação do direito ao sufrágio por interferência de programas sociais na escolha do eleitor, deve-se considerar todos os benefícios proporcionados pelo Estado aos indivíduos.

Em conclusão, a parte da cartilha, exposta no início, que afirma que indivíduos que recebem bolsa-família ou similares devem ter seu direito ao voto suspenso está equivocada e é incoerente. Discordo absolutamente da pretensão. Além de tudo, é inconstitucional, porque viola o sufrágio universal.

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Antes que me perguntem, e como lembrou a Prof. Eneida Desirree Salgado, a Constituição garante o sufrágio universal. Todos têm direito ao voto.

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Não estou afirmando não ser possível manter posição contrária ao bolsa-família. Claro que é possível (e há argumentos liberais para tanto). O que estou afirmando é: a influência do bolsa-família no voto é semelhante à influência que outros benefícios, incluindo as isenções tributárias, provocam. Não é adequado, então, relacionar autonomia da escolha do voto com bolsa-família.

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Papel do Estado é sempre tema relevante. Tive bom debate com os alunos da disciplina de Direito Financeiro sobre o custeio da educação pública superior gratuita. Atualmente, é suportada pelos impostos (ou seja, por todos os contribuintes). Tratarei desse tema no futuro.

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