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(Foto: Aniele Nascimento)

(Foto: Aniele Nascimento)

A Casa Kozák vai reabrir – estamos perto de um final feliz. Caso alguém não saiba do que se trate, aqui vai o resumo da ópera. No início dos anos 1990, a Vila São Paulo, no bairro do Uberaba, ganhou uma biblioteca de rua. Funcionava na casa onde viveu o indigenista tcheco Vladimir Kozák e sua irmã Carla. Durante quase 20 anos, a Kozák, como era chamada, gozou de excelente popularidade, de acordo com relatos. Até ser fechada, por força de relações delicadas entre o estado – que herdou o imóvel – e a prefeitura – mantenedora do espaço. O teto estava caindo e era preciso saber quem pagava a conta.

O povo da redondeza chiou, para surpresa de quem jura de pés juntos que brasileiro não é capaz de fazer protesto em prol de uma biblioteca. E eis que a Kozák virou um símbolo de descaso com a cultura. Lá se vão quatro anos de portas fechadas, lamentos na internet e fotos clandestinas do local abandonado, alimento para a revolta. A prefeitura rejeita o papel de vilã da história. Sustenta que havia um problema legal, resolvido apenas no final do ano passado, quando o governo do estado decidiu doar a casa para o município, liberando a temporada de obras no local. O dinheiro para reformá-la, algo na casa dos R$ 350 mil, sai no final de 2015, a contar pelo acordo do prefeito Gustavo Fruet com o vereador Helio Wirbiski (PPS), – morador do Uberaba e um dos que correram atrás para que a Kozák não ficasse na saudade.

Notícia velha? Não. O caso da Casa Kozák é uma boa desculpa para radiografar as políticas de leitura da prefeitura, desde, digamos… as bibliotecas de rua como as da Casa Kozák. Não foi ali que tudo começou, mas é um ponto de partida legítimo. A experiência é digna de figurar nos compêndios. Funcionavam em casas antigas, com muro baixo e relações de vizinhança. Digamos que eram pouco pretensiosas – ofereciam pequenas oficinas, conversa com escritores vez ou outra e apoio nos trabalhos escolares. Eram ponto de encontro. Lotavam e tudo corria muito bem.

Aos poucos, o modelo foi substituído pelos Faróis do Saber que, sem exagero, viraram uma paixão nacional. Os primeiros faróis inaugurados eram irmãos das bibliotecas de rua. Não rivalizavam. Os segundos, primos; e assim por diante, até se tornarem “uma coisa e outra coisa”, como se diz. Os faróis mantinham a proximidade com o asfalto e os bairros, com a particularidade de serem geridos pela secretaria de Educação e não pela secretaria de Cultura. Para quem pesquisa políticas de leitura, faz diferença, sim.

O cabo de força dos setores de educação puxa para a leitura escolarizada, hierarquizada e canônica; a cultura pende para a leitura no sentido mais liberal do tema. Enquanto casas como a Kozák funcionavam, as duas propostas coexistiam. Ponto. Mas o layout dos faróis venceu a parada. Soava perfeito, uma amarra entre a escola, os vizinhos e a cidade, até que deixaram de ser uma política de governo, sob a alegação de que são pequenos, onerosos e até inseguros. Eis o ponto. Uma das hipóteses sobre a mudança da cara das bibliotecas curitibanas é de que elas mudaram de porta. Nenhuma nova escola ganha farol, ganha biblioteca, com abertura para a comunidade, mas sempre com reservas. Nesse sentido, tem-se um retrocesso – ainda que não se possa deixar de reconhecer todas as qualidades do sistema de bibliotecas municipais.

Enquanto os faróis cederam passagem às bibliotecas internas, dentro do prédio da escola, as Kozáks e outras viraram Casas de Leitura. Foi melhor? A prefeitura mais uma vez se defende. Diz que não desistiu das bibliotecas de rua – reinventou-as. Em vez dos quatro endereços dos tempos da Kozák hoje são 13 espaços convertidos em Casas de Leitura. Funcionam onde funciona a cidade – na rua, mas também em terminais de ônibus e Ruas da Cidadania e no Parque Barigui. Não são mais geridos por líderes carismáticos, como Florência Rocha, tida como a alma da Casa Kozák, mas por profissionais terceirizados, obrigados a elaborar projetos de leitura.

Além do mais, resta a pergunta – até que ponto a sociedade do medo, da mobilidade difícil, das vizinhanças verticalizadas, comportam bibliotecas na escala da Kozák e suas similares – como a Franco Giglio, no Campo Comprido, ou a Miguel de Cervantes, no cruzamento do Bigorrilho com as Mercês? O primeiro impulso é dizer que “deveriam comportar”, afinal, biblioteca na rua – seja numa casa ou num farol – é resistência urbana, convite a circular na calçada. Diminui criminalidade, está provado. Mas é compreensível que essa proposta tenha de conviver com outras, mais atentas aos ditames da violência.

Nesse sentido, o romantismo da Casa Kozák mora no passado – um tempo em que crianças e adolescentes podiam sair de casa sem a tutela dos pais. E que precisavam da Enciclopédia Barsa para fazer um trabalho escolar. Agora não mais. Digamos que a melhor medida seja não se render aos imperativos do medo. Nem tampouco deixar de atender à nova realidade. Já está anunciado que a Casa Kozák voltará como Casa da Leitura – misto de biblioteca e espaço cultural. Nesse dia, convenhamos, encontrará uma Vila São Paulo diferente da que encontrou nos anos 1990. A vila tem mais sobrados, está mais rica e conta com outra vizinhança. Tomara essa segunda dentição, essa nova pele da Kozák, seja tão incrível quanto a primeira, ainda que diferente. É a vida.

https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/vila-sao-paulo-quer-de-volta-a-biblioteca-bv5o7kbfuyh8xvtzf7229w3za

*José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná – UFPR. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.

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