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(Imagem: Daniel Zanela)

(Imagem: Daniel Zanela)

Chegado o mês de outubro, a cobertura da mídia sobre o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) aumenta em frequência e, por que não dizer, em polêmica. A cada edição desponta o interesse dos veículos de comunicação em apontar as falhas do processo, os eventuais transtornos que o Exame causa aos alunos e, cena clássica requentada da cobertura dos vestibulares, o desespero dos candidatos que perdem a hora e não conseguem entrar para fazer as provas.

A educação é um processo reconhecidamente complexo e, no atual contexto nacional, até coisas simples adquiriram camadas de polêmica explicáveis apenas por uma epidemia de histeria coletiva cujas causas ainda serão estudadas, mas com sintomas visíveis a todos. Nesse estado de coisas, sugerir que a realidade é complexa, que existem nuances diversas no comportamento social e político e que a sociedade não resolve seus problemas com soluções binárias tem sido, infelizmente, atitude de pouco retorno. É mais fácil e popular render-se à lógica de arquibancada e pregar verdades definitivas, ainda que não se entenda absolutamente nada do assunto. O que vale é a quantidade de curtidas e o barulho provocado.

Mas voltemos ao Enem. Desde sua primeira edição, o Exame é alvo de críticas. Por sua complexidade e abrangência, é esperado que a prova e o processo de sua elaboração, aplicação, correção e divulgação dos resultados sejam passíveis de aprimoramentos e ajustes. No entanto, seria má-fé não admitir alguns fatos engendrados pela consolidação do Enem no universo escolar, tais como: 1) a criação de uma nova forma de ingresso no ensino superior além do vestibular; 2) a popularização do Exame suscitou um debate (absolutamente necessário) sobre o currículo do Ensino Médio; e 3) a consolidação do Exame como instrumento de política pública nos forneceu dados preciosos sobre este nível de ensino.

Destaquemos o último ponto. Ao prestar o Enem, o aluno fornece dois conjuntos de dados: primeiro e mais óbvio, aqueles referentes ao seu desempenho nas cinco provas e, segundo, seu perfil socioeconômico via questionário. Tais informações são disponibilizadas pelo Inep anualmente, e representam hoje uma massa de dados riquíssima sobre a educação brasileira. Infelizmente, e de forma coerente com o afã simplificador de nossos tempos, tais dados são apropriados pela sociedade, em geral, na forma de rankings. Assim como no Brasileirão, para os jornalões o Enem tem campeão, G4 e zona de rebaixamento. A realidade complexa do Exame – reflexo da complexidade educacional do Brasil – vira apenas uma lista de vencedores e perdedores.

Felizmente, o pensamento binário ainda não tomou conta de tudo e alguns poucos intelectuais e instituições têm se debruçado sobre os dados e descoberto coisas interessantes. Afinal de contas, quando se observa que as escolas que apresentam as melhores médias no Exame são, via de regra, aquelas situadas em grandes centros urbanos, privadas, voltadas a uma clientela das classes alta e média, as conclusões a que podemos chegar são as de sempre: o ensino de excelência é um privilégio, a educação pública é o caos, e assim por diante.

A definição de qualidade na educação é longa e não cabe, numa postagem de blog, polemizar sobre isso. Ainda assim, os resultados do Exame são usados ano após ano como indicador de qualidade, tal como se vê em campanhas de marketing das escolas privadas (“a campeã do Enem” e outras platitudes). O ponto que uma interpretação nesse nível dos resultados oculta é: quais são os fatores que levaram a escola A, situada numa região nobre de um grande centro urbano, a apresentar resultados melhores que a escola B, inserida na área rural de uma cidade periférica? Em que medida a escola, e não a seleção natural de seu alunado e as condições de vida das famílias dos alunos, contribuiu para o desempenho de cada um no Exame? Felizmente, algumas poucas iniciativas tentam fornecer tais respostas.

Na divulgação dos resultados da edição de 2013 o Inep passou a divulgar um novo índice, chamado de Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas (Inse). Seu objetivo é situar o conjunto dos alunos em um estrato social, entendido como o acesso à renda, bens materiais, nível de escolaridade dos pais, entre outros. A análise criteriosa dos resultados das escolas à luz do Inse mostra aquilo que os marqueteiros jamais revelarão por dever de ofício, e que a mídia não revela por falta de conhecimento ou preguiça: os principais fatores de desempenho de uma escola no Exame têm maior relação com o nível socioeconômico de seus alunos do que o trabalho efetivo desenvolvido pela escola. Em resumo, a eficácia escolar (school effectiveness) representa apenas de 9 a 18% da nota, em consonância com resultados internacionais.

A obviedade resume-se assim: alunos com boas condições de vida geralmente estudam em escolas que atendem apenas essa clientela, e o que as mesmas agregam em termos de conhecimento é pouco comparado ao efeito do background familiar. Já alunos não privilegiados acabam indo para escolas sem estrutura, e a reprodução perversa da desigualdade de oportunidades se cristaliza.

Em estudo de doutorado realizado recentemente na Faculdade de Educação da USP, usaram-se os micro dados disponibilizados pelo Enem para, retirados os fatores externos à escola, medir o efeito desta sobre o desempenho dos alunos. Tal operação revelou que a maior eficácia escolar foi apresentada por escolas que, a despeito de atenderem uma clientela de não privilegiados e de apresentarem condições bastante inferiores se comparadas às escolas tradicionais, conseguiram elevar o desempenho dos alunos acima do esperado.

Infelizmente, estudos dessa natureza ainda são raros. Goste-se ou não do Enem, o fato é que ele tem possibilitado, ano após ano, um diagnóstico profundo da realidade do ensino médio brasileiro, diagnóstico este que está à espera do interesse metódico de nossos intelectuais e pesquisadores. Enquanto eles não aparecem, fiquemos com os rankings.

*Christiano Ferreira é mestre em História Social do Trabalho pela Unicamp e atua há mais de uma década como professor e gestor educacional. É sócio-diretor da Virtú, empresa especializada em projetos educacionais e produção de materiais didáticos. Atualmente pesquisa as relações entre educação e desenvolvimento econômico e social. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.

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