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(Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo/ Rodolfo Buhrer)
(Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo/ Rodolfo Buhrer)| Foto:
(Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo/ Rodolfo Buhrer)

(Foto: Arquivo/ Gazeta do Povo/ Rodolfo Buhrer)

Não é justo – Rubem Alves morreu. Vou me somar aqui aos milhares de viúvos e viúvas do mais inspirador educador do país, ao lado de Paulo Freire. Sei que a melhor medida é a sabedoria: Rubem está vivo nos livros que escreveu, nas palestras que deu. Mas o momento é de luto, desde o último sábado. Podemos nos reservar o direito de chorar o morto estimado e insubstituível.

Desculpem-me ser tão pessoal. Gostaria de relatar aqui fragmentos de uma história de leitor, com esperança de que outros façam o mesmo. Sempre digo que o Rubem Alves salvou minha vida. Foi num momento muito depressivo. Não sei por quais caminhos, chegou às minhas mãos o livrinho O que é religião?, da coleção Primeiros Passos. Conhecia dele, àquela altura, Filosofia da ciência, um dos seus inesperados best sellers no mundo acadêmico [recomendo]. Mas poucas leituras ficaram para sempre como aquele livro de bolso – repito aqui e ali o que o autor disse sobre a “memória biológica”, uma benesse da qual nós, humanos, não podemos desfrutar. Precisamos do símbolo e das palavras, do contrário, morremos.

Nunca mais nos separamos – e ele nem imaginava. Nas horas difíceis, lembrava de uma frase de O que é religião? – “aqueles que se levam a sério, que julgam ter encontrado a verdade, são os que acendem fogueiras para queimar os outros.” Simples como isso. Aprender a não se levar tão a sério virou o meu botãozinho vermelho do Doutor Fantástico. Em cada crise, detonava o mundo de certezas, recomeçando, com mais alegria. Adorava as parábolas. E bola para frente.

Foi um percurso entre leitor e autor dos mais tortuosos, pero com açúcar, com afeto. Durante um tempo, me interessou muito um aspecto menos conhecido da obra de Rubem Alves – seus estudos da Filosofia do Corpo, feitas num tempo em que estudou nos Estados Unidos. Lembro de ter lido que essa teoria influenciou o nascimento da Teologia da Libertação – e Rubem não escondia que era mais revolucionária que a onda que abalou a Igreja latino-americana. Ainda suspeito que o segredo para entender esse psicanalista, filósofo, teólogo, pastor e educador esteja ali, na Filosofia do Corpo.

Nem bem tinha entendido do riscado, logo fui atropelado por uma obra secundária de sua biblioteca de mais de 120 títulos – chama-se Variações sobre a vida e a morte. Perdi a conta de quantos comprei para dar aos amigos, aos desesperados. Garantia – “salva vidas” – e entregava o presente. Acho que Rubem está inteiro ali: as metáforas da música, seus conflitos com o protestantismo, a leitura profundíssima que fez de Nietzsche, o espírito brincante, a cativante homenagem a García Márquez, um dos muitos autores que amava, os espaços e os corpos felizes.

Tenho para mim que, anos depois, ao escrever crônicas [premiadas, aliás] para o caderno Sinapse, da Folha de S. Paulo, deu continuidade aos prazeres da mesa, como gostava de dizer, consolidados em Variações sobre a vida e a morte. A referência às delícias da cozinha são perfeitas – Rubem Alves era um antropófago fino, ligado aos cheiros que saíam das panelas, aos legumes cortados, depois temperava tudo com palavras.

Com suas papas, nos ajudava a devorar não só Nietzshe, por quem nutria paixão oceânica, mas também Wittgenstein. Impossível esquecer seus textos sobre a “caixa de brinquedos” da linguagem. Wittgenstein não ficou mais fácil, ficou apaixonante, um companheiro de viagem. Rubem Alves nos mostrava como tirar o mais hermético dos filósofos para dançar.

Tenho uma pequena vaidade em se tratando de Rubem Alves. No início dos anos 2000, durante uma passagem dele por Curitiba, tive a oportunidade de entrevistá-lo, finalmente. Repeti a dose uma outra vez, por telefone. Nessas ocasiões, falei sobre um dos aspectos da sua obra que mais me instigava – seus textos imperfeitos na forma eram perfeitos para serem reproduzidos imediatamente na fala. Seria de propósito? Um jogo? [ele adorava essa palavra]

Rubem não confirmou. Fez mais do que isso. Confidenciou que depois de ter rompido com umas tantas confissões evangélicas, começou a padecer de saudade – saudade da homilia de domingo. Ele adorava prepará-las. E homilias são feitas para serem ouvidas e rapidamente recontadas. É preciso escrevê-las lendo em voz alta, para perceber se caem bem nos ouvidos. Para que deem certo, é preciso repetir palavras, procurar musicalidade, ritmos, trazer para o rés do chão, de modo que o abstrato se torne uma fruta nas mãos do leitor. Textos perfeitos e frios não viram homilias, não insalivam a boca, não pedem que sejam repetidos, como palavras de amor.

Pois é, nesse tempo todo Rubem Alves, esse danado, nos passou sermões. Fez homilias. Ele nos deu palavras para que experimentássemos e saíssemos por aí, fazendo-as nossas, somando a elas nossos próprios sabores. De tudo o que era, Rubem, penso, foi sobretudo um pastor, no sentido, permitam, mais gostoso da palavra.

*José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da UFPR.

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