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(Foto: Divulgação)

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Dias atrás um colega professor que muito admiro desabafou comigo. Talento intelectual desses de tirar a boina, gênio criativo incansável na arte de lecionar, esse brasileiro de boa cepa, que nasceu debaixo do assoalho, mas foi desmamado com garapa, contou-me que não aguenta mais. Cansou de falar de política. Quer antes reatar os laços afetivos rompidos em meio às discussões intermináveis que travou com os seus nas redes sociais digitais, dessas que na mesma rajada nos unem pelos dedos e nos separam pelas palavras.

Pois ele digitava engatilhado. E por sua proficiência em humanas, e pela sua perspicácia na escrita, poderia ter ido bem mais longe, não fosse o fato de que no campo de batalha, diante dele, estavam os seus, os que com ele trabalham, os vizinhos, os familiares.

Meu colega professor escrevia como se tivesse de megafone em punho, enumerando em alta voz as evidências do engodo em que os seus se meteram, lembrando-lhes do país em que vivem, apontando-lhes as possíveis origens de suas ilusões diante da farta e continuada propaganda enganosa, diante da onda conservadora e da duvidosa solução dada ao caso da crise que se principiou entre nós de uns tempos pra cá.

Desiludido com a ineficácia de suas exposições conceituais nas redes e com a quantidade de manifestações contrárias aos seus argumentos, foi conversar pessoalmente com um dos seus. Chegou a reunir coleções de dados que listavam as mais contundentes evidências do engodo jurídico e midiático que se instalou no país. Mas a ofensiva não surtiu nenhum efeito positivo. O parente levantou pra seis antes mesmo dele esboçar alguma tentativa de análise mais aprofundada. E o professor adoeceu.

No auge de seu tormento pensou em recorrer ao padre. Sim, o padre que a todos acolhe, o mesmo que batizou e casou muitos dos seus, que percorreu os bairros pobres da periferia, que no ano passado acolheu na casa paroquial dezenas de vítimas da chuva de pedras que nos destelhou dois terços da cidade. Com o padre ensinando junto, apontaria caso a caso as distrações que levaram os seus a se esquivarem de notar o vácuo entre o real e o imaginário, entre o ocorrido e o forjado. Assim aqueles familiares e amigos, que por razão ainda desconhecida não arredavam o pé da certeza, poderiam enfim compreender as razões das desigualdades socioeconômicas que assolam o país e que fazem as vantagens de poucos parecerem direitos, e os direitos de muitos sucumbirem ao dolo.

Mas essa ideia de recorrer ao santíssimo foi só mais um brado entre tantos outros delírios que culminaram com os pesadelos daquela noite, a véspera do dia em que nos encontramos. Sonhou que tinha se metido numa greve de fome, acorrentando-se junto a uma daquelas árvores da pracinha em frente ao colégio, num ato improvável de pura doação à causa, fazendo a opinião pública chocar-se com tamanha perseverança. Sonhou que os seus, sensivelmente tocados pelo sofrimento alheio, rendidos pelo gesto de resiliência extrema do docente, uns por dó, outros por incômodo, uns por identificação, outros por acreditarem que todo sacrifício vale quanto pesa, tomavam consciência da profundidade de seus argumentos e, arrependidos, pediam-lhe desculpas.

Despertou do pesadelo lavado em suor, trêmulo e com o olhar fixado em um velho quadro que mantinha na parede do quarto. Na pintura, uma lavoura e alguns roceiros. Sonolento, viu seus familiares no quadro em meio a lavoura, a trabalhar. Viu mesmo. É que, como todo delírio, o seu também trazia nas profundezas um lapso de realidade. Meu colega professor, e os seus, possuem raízes nas colônias camponesas aqui do Sul. São descendentes de casais de sem-terra europeus que por aqui aportaram em busca de chão. São bisnetos de gente que não tinha posses, tal e qual os milhões daqui, mas com a diferença de que lhes foi prometido e concedido terra, ainda que em condições adversas e em radical detrimento dos que por aqui já viviam e de terra careciam.

Para o professor, essa diferença entre acolher os de fora e rejeitar os de dentro era um dado fundamental para o entendimento da formação da sociedade brasileira. Eu, que o segui por um tempo em seus comentários, vi que enumerava com muito cuidado os mais emblemáticos casos de conflitos de terra que puseram a correr camponeses ao longo de mais de um século de grilagem sistemática de terras nos interiores do Brasil profundo. Ele mencionava empresas estrangeiras e políticos da mais refinada estirpe, que hoje dão nome a praças e ruas, e que estiveram envolvidos nos clássicos e vindouros esquemas de títulos falsos que acabaram com a morte de tantos e tantos trabalhadores em nome do tal irrefutável direito à propriedade privada.

Seu desabafo rendeu reflexões. Se aqui escrevo é porque ele me inspirou pra isso. O professor fizera da arte de educar um modus operandi, um estado de espírito pedagógico e humanístico continuado, um gesto missionário, sem o qual desabariam as suas razões do viver. Sua arte extrapolava a sala de aula. Transbordava a ponto de invadir espaços intrincados, densos, entrelaçados, como o dos afetos familiares, nos quais agora se via encurralado.

Feliz de mim se pudesse aqui transcrever as justas palavras com as quais concluiu o desabafo naquele dia, esmiuçando com uma poética de umedecer os olhos aquela máxima de que “às vezes é necessário dar um passo atrás para dar dois à frente”. Ah se eu pudesse aqui reproduzir a entonação exata com a qual me disse em mansa voz que a função do professor não é convencer, mas convidar a pensar, é criar estratégias de aproximação e promover encontros, é estar atento às condições de escuta dos que lhe ouvem.

Despediu-se de mim em tom mais aliviado. Sei que vai reatar laços com os seus sem deixar de ser o que sempre foi. Se bem o conheço, vai redesenhar a forma sem esvaziar o conteúdo, vai alterar o método sem maquiar o tema. Vai manter-se vívido de esperança. Guardarei comigo mais esta lição de meu amigo, esse mestre do educar, para quem a maior das artes sempre foi a do diálogo.

*Artigo escrito por Nélio Spréa, doutorando e Mestre em Educação pela UFPR – Universidade Federal do Paraná, graduado em Música pela FAP – Faculdade de Artes do Paraná, palestrante e diretor da Parabolé Educação e Cultura, que desenvolve projetos culturais de interesse social e educacional. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no Blog Educação & Mídia.

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