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Datas cívicas: pra que servem?
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Minha infância e adolescência foi vivida sob a ditadura militar. De quebra, fiz meu ensino fundamental em um colégio militar. Logo, minhas aulas de História eram intermináveis perorações sobre os vultos da pátria. Finda a ditadura e chegado ao mundo adulto, peguei uma espécie de urticária dessa história de “heróis ”.

Mas isso durou só um tempo. Vi que desprezar essa reflexão era fazer o papel do bandido. A História não era “deles”, era nossa. E os acontecimentos estruturantes de nosso país mereciam ser revisitados pelo olhar crítico e democrático do presente.

Assim, D. João VI com sua hesitação assustada pareceu-me mais humano , da mesma forma que Deodoro com sua vaidade ridícula, Floriano com sua sobriedade exagerada, Getúlio e seu autoritarismo dos pampas, Juscelino e sua brejeirice, Jânio em sua ebriedade, Jango em sua tristeza. Todos humanos, demasiadamente humanos. E antes ainda: Tiradentes e a solidão do cárcere, a depressão e a ruína de ideias e companheiros transformada em poemas canhestros para a rainha e pedidos humilhantes de perdão; frei Caneca e a força do artigo, a catilinária contra o autoritarismo: “D Pedro precisa ser destruído! O próprio D. Pedro, sem formação e experiência, na solidão da crise, a arrogância e a nobreza dando-lhe maus conselhos, a influência dos amigos oportunistas, a leitura mal digerida dos textos iluministas, a saída sempre tentadora de se tornar um “salvador” do país, um pai severo mas leal. E aí de novo Getúlio e mais recentemente Lula: pastores aplicados e fieis de suas ovelhas.

E temos, partindo desse bric a brac de referências, espalhados pelo calendário, datas cívicas que refletem nossa ambiguidade com o passado: um 21 de abril a lembrar um republicano contra a opressão metropolitana; um 7 de setembro a comemorar o herdeiro do trono que promoveu um independência conservadora, esse paradoxo típico das mudanças em nosso país; um 15 de novembro, de uma res publica que surgiu sem o aplauso do povo, mas com sua total indiferença, retratada na notável frase do genial Lima Barreto: “esse país não tem povo, tem público”.

E essas datas cívicas são lidas em nossa democracia canhestra como feriados. Quando caem na terça ou quinta, como são lembradas! Mas nunca pensadas: um Tiradentes que lembra uma República que nunca houve; um D. Pedro que refere-se às mudanças que jamais foram pensadas seriamente pelos governantes; um Deodoro que, mal assumiu, censurou a imprensa e prendeu opositores, além de infligir ao Congresso um autogolpe para perpetuar-se no poder, numa versão beta de mensalinhos e mensalões posteriores.

Passada a ditadura, chegado à idade madura, professor que sou de jovens sem passado comum e cada vez com futuro mais estreito, penso que é urgente reescrevermos a história de nosso calendário, de nossas ruas, de nossos prédios, estádios e palácios. Pois pior que um passado ausente é um passado cretino.

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