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Sérgio Buarque de Holanda, o pai do Chico, dizia, em seu hoje clássico “Raízes do Brasil”, algo muito interessante para refletirmos sobre o nosso Congresso e sua exibição “de gala” na noite do último dia 17 de abril: Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante às leis da cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares(…) A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência. (p.110)

Sim, Sérgio Buarque, é aquele “cara” que fala sobre a “cordialidade” brasileira. E não, ele não fazia disso um elogio, mas uma constatação de nossa dificuldade de incorporar formas modernas, racionais, de administração. Administração Pública, no sentido de geral, impessoal, para todos, sem exceções de natureza grupal, nobiliárquica ou pessoal. Muito menos financeira. Aquilo que mais tarde, Roberto da Matta expressará no dístico: “sabe com você está falando? X quem você pensa que é?”

O crítico literário e pensador Antônio Cândido, prefaciando a obra do dito Sérgio, comenta, citando o autor, sobre as consequências dessa “cordialidade” na política: Na vida política, a isso correspondem o liberalismo ornamental ( que em realidade provém do desejo de negar uma autoridade incômoda) e a ausência de verdadeiro espírito democrático. “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semi feudal importou-a e tratou de acomoda-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas”. Os nossos movimentos “aparentemente reformadores” teriam sido, de fato, impostos de cima para baixo pelos grupos dominantes.

E por caso, não foi isso que assistimos na sessão de admissibilidade do impeachment da presidente Dilma Rousseff no dia 17?

Um dado: dos 511 deputados que se manifestaram ( 2 faltaram), apenas 26 fizeram referencia a admissibilidade do crime de responsabilidade que estava sendo julgado. É fato que não precisariam ter feito referencia e votado apenas “sim”, “não” ou “abstenho-me”. No entanto, a maioria absoluta – curiosa exceção foi o deputado procurado pela Interpol Paulo Maluf – fez questão de “justificar” o seu voto. E aí o que se viu foi a tradução maior das “raízes do Brasil”: por minha família, por minha religião, por minha cidade, pelos meus amigos, pelos meus interesses, até pelos meus filhos falecidos ou ainda por nascer!

Teve também homenagem a torturador e teve cusparada na cara. Teve empurra-empurra, choros e vaias. E, para coroar a ópera-bufa, um hino nacional foi entoado pela metade pois quem diabos sabe essa letra tão complicada?

Nas redes sociais misturaram-se comemorações passionais – li frases como: “Cunha é nosso malvado favorito! E logo depois, no mesmo post: “abaixo a corrupção!” – e reações passionais. Eu mesmo me vi destilando frustração e vergonha por parlamentares como aquele que levou um tubete de confetes, traduzindo com candura e sinceridade o carnaval em curso naquele plenário. Mas a madrugada é boa conselheira e o que ficava claro na vergonha que eu sentia não era a vergonha do que os parlamentares, em sua maioria fizeram: era identificar que nós somos, em nossa maioria, como eles. No jeitinho de colocar a chave na mesa do restaurante do hotel ou a bolsa no banco do lado – pra dizer que “tá ocupado”- ou o amigo que fica na fila do cinema e, na hora agá, 10 outros amigos vão ocupar o lugar que ele “reservou”, ou o pai que põe um filho em cada fila do supermercado pra “garantir” lugar, ou o pai e mãe que “fazem tudo pelos filhos”, o que implica pedir favores em cargos e posições, ajuda na escola ou lugar no time. “Deixa que eu dou um jeito!” é frase de valor, destaca na multidão, o cara que conhece o segurança da casa noturna e depois da conversa no pé de ouvido, vira para a galera que tá esperando na calçada e diz: “podem vir que está liberado”, diante da fila entre indignada e admirada.

Certa vez, na fila – enorme – para visitar as cataratas – um homem com crachá aproximou-se de mim e de meu amigo e perguntou se faríamos um dos passeios – que eram pagos à parte – e perguntou se gostaríamos de sair da fila porque quem fosse fazer esses passeios não precisaria ficar na fila. Eu achei gentil, bacana a sugestão dele, sair daquela fila e daquele calor parecia uma boa ideia. Meu amigo, republicano, estrilou: “mas por que vamos poder sair da fila se os outros vão ter de ficar?” “Porque vocês vão pagar um passeio à parte, disse com candura o home do crachá.” ”Mas a fila para o outro passeio não é lá dentro? Essa fila não é apenas para entrar no parque? E para fazer outro passeio não é preciso primeiro entre no parque?” “Sim, disse o senhor, mais jeitoso ainda. Aí é que está: se o senhor for fazer o passeio, a cortesia é não precisar ficar nessa fila”. Eu já convencido, o calor me matando ( embora tivesse também queimando o cocuruto de todo mundo ali), já começava a puxar meus documentos pra entregar pro homem. Meu amigo então disse: “não quero! Isso está errado! Você é um corrupto!”. O homem, indignado pegou o rádio e disse : “João, deixa! O pessoal aqui NÃO quer sair da fila!” Com cara de quem não entendia nada, foi embora.

Guardei esse constrangimento como lição. No entanto, ao ver os parlamentares ontem, voltei a me indignar, como se fossem eles. Não! Eles são como a maioria de nós! Ou mudamos isso ou não muda nada.

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