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Lembro-me, criança, mendigos ficavam nas ruas do centro da cidade, as pernas esticadas, mostrando chagas infeccionadas, as moscas ali tomando café da manhã. Passávamos tendo de pular aquela perna-manifesto, aquele outdoor da pobreza e do descaso, o mendigo jogando-nos na cara sua ferida, sua sujeira, sua pobreza e sua raiva.

Lembro-me, principalmente, de meu pai falando: “não olhe. Ele faz isso pra provocar sua pena e tirar seu dinheiro. Eles próprios fazem a ferida e deixam infeccionar. Como se não tivéssemos já nossos próprios problemas.

E passávamos , rabos de olho na ferida e na cara de raiva do mendigo, mas com nossas moedas para as balas e para as figurinhas no bolso, impávidas e à salvo daquela tramoia para mexer com nossos sentimentos de culpa. Como pode um cara fazer isso …com a gente?

Mais de quarenta anos se passaram e não há mais mendigos com pernas putrefatas nas ruas. Por outro lado, o discurso de meu pai na boca de tantos mudou pouco. Nosso inconformismo é sempre com o que pode nos atingir. O que está atingindo outros – afinal, aquela ferida devia doer muito! – parece-nos distante como o Quênia ou a Síria. O importante, porém, é não cairmos na esparrela de nos entristecer por algo que não nos diz respeito para não posar de hipócrita, gente querendo aparecer. As redes sociais estão cheias dessas lágrimas de crocodilo. É tudo pena de mendigo com a perna supurada. “Por que eles não vão trabalhar ao invés de atravancar nossa calçada? Por que olhar para a dor dos outros se o que importa é o que eu sinto? Olhem pra mim! Curtam-me! Compartilhem-me! Também tenho feridas na perna! Querem ver? Querem ver?

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