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400 anos da morte de Shakespeare, inspirador musical de todas as épocas
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400 anos da morte de Willian Shakespeare (1554-1616)! Momento apropriado para avaliarmos que além da qualidade inquestionável do dramaturgo sua produção foi e tem sido fonte de inspiração para grandes obras musicais, desde o período barroco até os dias de hoje. Creio ser oportuno fazer um levantamento destas obras primas inspiradas por um dos maiores dramaturgos da história.

Henry Purcell em pintura de Closterman

Henry Purcell em pintura de Closterman

Os primeiros compositores a lidar com Shakespeare

A lista de grandes mestres inspirados pelo “Bardo inglês” começa com Henry Purcell, o maior compositor inglês do século XVII, que se utilizou de poemas de Shakespeare em algumas canções, além de escrever música de cena para “A tempestade” e “Tímon de Atenas” além de sua “Máscara”, “A rainha das fadas”, ser calcada em torno de “Sonho de uma noite de verão”. Se no século XVIII Shakespeare foi pouco lembrado pelos compositores, no século XIX seu nome estará ligado a obras musicais com enorme frequência. No início deste século constatamos que seus textos aparecem nas canções “An Sylvia” e “Städchen” de Franz Schubert. Estas breves obras, escritas em 1826, se utilizam de versos extraídos das peças “Os Dois Cavalheiros de Verona” (An Sylvia) e “Cymbeline” (Städchen). Mas estas pequenas joias de Schubert não parecem prever a fortíssima presença do escritor inglês na produção musical do romantismo. Num contexto distante da era elisabetana Shakespeare inspirará grandes obras musicais, especialmente óperas e poemas sinfônicos.

Rossini, o compositor que criou um final feliz para Otello

Rossini, o compositor que criou um final feliz para Otello

Shakespeare e o mundo da ópera

Em 1816, subia à cena em Nápoles a mais antiga ópera importante inspirada em Shakespeare: “Otello” de Rossini. O libreto se afasta tanto da peça shakespeariana que muitos estudiosos pensam que o libretista (Berio di Salsa) na verdade se baseou numa peça de teatro de um certo Carlo Cozena, que plagiou o escritor inglês no final do século XVIII. Quando Rossini levou a ópera a Roma alguns anos depois, esbarrou numa proibição feita pelo Papa naquela época de que não poderiam aparecer cadáveres em cena. Rossini não titubeou: compôs um “final feliz” em que Otello, ao invés de matar sua esposa e se suicidar, perdoa Desdêmona com um juramento mútuo de “amor eterno”. 18 anos depois, em 1834, surge uma obra escrita por um dos mais importantes compositores de ópera de todos os tempos: Richard Wagner. Pena que permanece desconhecida até hoje: “Das Liebesverbot” (A proibição se amar). Foi a segunda ópera do autor, e teve apenas uma apresentação durante a vida do compositor e cujo libreto, escrito pelo próprio Wagner, foi baseado na comédia “Medida por medida” (Measure for Measure). Outra ópera com raízes shakespearianas e raramente montada é “As alegres comadres de Windsor” de Otto Nicolai (1810-1849), o fundador da Filarmônica de Viena. Montada com mais frequência, especialmente quando há um barítono de grande qualidade, Hamlet do compositor francês Ambroise Thomas (1811-1876), apresenta uma adaptação simplista do original shakespeariano. Composta em 1868 fez sucesso na onda de apresentações da peça traduzida e adaptada por Alexandre Dumas. Maria Callas imortalizou a cena de loucura de Ophelia e vale a pena lembrar que “Hamlet” de Thomas foi a primeira ópera montada no Theatro Municipal de São Paulo, em 1911. Com um libreto muito mais coerente aparece a comédia Béatrice et Bénédict de Hector Berlioz. Composta em 1858 e com libreto do próprio compositor, segue de perto a comédia de Shakespeare ”Muito barulho por nada” (Much ado about nothing). Também é uma ópera raramente montada, apesar de suas grandes qualidades. Duas óperas baseadas em Romeu e Julieta compostas no século XIX se revelam dramaticamente obras afastadas do original Shakespeariano: I Capuleti e i Montecchi de Bellini e Roméo et Juliette de Gounod. Boa música com dramaturgia discutível.

Cena da ópera Otello de Verdi

Cena da ópera Otello de Verdi

Verdi e Shakespeare

As mais populares óperas baseadas em peças de Shakespeare foram compostas por Giuseppe Verdi. A primeira delas é do início da carreira do compositor e tem um libreto sofrível: “Macbeth”. Escrita em 1847 e revisada em 1865 tem momentos de grande inspiração, como a cena do sonambulismo, ao lado de música de qualidade questionável, como a marcha de entrada do Rei no primeiro ato. Mesmo assim é, junto com “Nabucco”, a mais executada das obras de Verdi do primeiro período. No final da vida Verdi junto ao libretista Arrigo Boito (que também foi compositor) escreveu as mais conhecidas óperas baseadas em peças de Shakespeare: “Otello” (1887) e “Falstaff” (1892). Esta última é baseada na comédia “As alegres comadres de Windsor”. Com libretos concisos e altamente respeitosos ao texto original estas duas obras estão entre as melhores óperas de todos os tempos. A junção do gênio de Shakespeare com a maturidade de Verdi legou ao mundo duas inquestionáveis obras primas.

O compositor Berlioz em foto de Nadar

O compositor Berlioz em foto de Nadar

Shakespeare e a música sinfônica

Durante o século XIX um número considerável de obras sinfônicas baseadas em peças de Shakespeare foi composto. Sobretudo poemas sinfônicos que apareceram também com títulos de sinfonias ou aberturas. Vou me ater às mais importantes. O compositor que mais vezes se utilizou de Shakespeare em suas obras foi o francês Hector Berlioz. A primeira destas obras é uma “Fantasia sobre A tempestade de Shakespeare” para coro e orquestra, de 1830, posteriormente utilizada em sua obra “Lelio”. Já nesta partitura fica evidente a paixão que o compositor tinha pelo escritor inglês. Em 1831 escreve uma “Abertura Rei Lear”, uma espécie de reflexão sinfônica sobre o drama. Em 1839 aparece sua obra mais importante sobre um drama de Shakespeare: A “Sinfonia Dramática Romeu e Julieta” para solistas, dois coros e grande orquestra, partitura com quase duas horas de duração. Há nesta obra uma mistura de diversos gêneros musicais: Cantata, Sinfonia e Ópera. A compreensão do compositor da conhecida peça de teatro é muito significativa, atestada pela sensualidade da cena do balcão, passando pelo episódio da “Rainha Mab” com um impressionante scherzo, uma descrição dolorosa e original da morte dos amantes e, seguindo o original shakespeariano, a conciliação das duas famílias inimigas graças à intervenção do Frei Lourenço. A obra termina de maneira grandiosa e esperançosa. Em 1849 escreve uma magnífica “Marcha Fúnebre para Hamlet”, parte final de uma obra chamada “Tristia”, e no final da vida a ópera que já citei acima, “Béatrice et Bénédict” (1862). Uma integração maravilhosa entre Shakespeare e a música está na obra “Sonho de uma noite de verão”, música incidental que Felix Mendelssohn escreveu para a peça entre 1826 (a genial abertura) e 1842 (as outras partes da obra). O mundo dos elfos pintado de maneira sutil e a famosíssima Marcha nupcial fazem desta partitura um verdadeiro tesouro. Outro compositor que escreveu diversas obras sobre dramas de Shakespeare foi Tchaikovsky. A que ele compôs primeiro é a que se tornou mais famosa: A “Abertura fantasia Romeu e Julieta”, escrita em 1870 e revista dez anos depois. Curioso é que o personagem do Frei Lourenço é descrito musicalmente como um sacerdote Ortodoxo Russo, a orquestra descreve de maneira muito clara os duelos das famílias inimigas (os pratos imitam as espadas por exemplo) e o tema de amor é uma melodia das mais populares do autor. Tchaikovsky voltaria a Shakespeare mais duas vezes: “A tempestade- Fantasia sinfônica sobre a obra de Shakespeare”, escrita em 1873, uma de suas melhores obras sinfônicas e a “Abertura Fantasia Hamlet”, de 1888. Um exemplo notável de concisão e beleza está no Poema Sinfônico “Ricardo III” do compositor tcheco Bedřich Smetana, composto em 1858. E digno de nota é o poema sinfônico “Hamlet” de Franz Liszt, escrito em 1854. Há também um desconhecido poema sinfônico de Richard Strauss: “Macbeth”, escrito em 1888, obra que merecia ser executada mais frequentemente.

Barbara Hannigan interpretando as canções que Abrahamsen escreveu sobre Ophelia

Barbara Hannigan interpretando as canções que Abrahamsen escreveu sobre Ophelia

Shakespeare na música dos séculos XX e XXI

Depois do século XIX as peças de Shakespeare foram revisitadas raras vezes pelos grandes compositores. Na primeira metade do século XX destacam-se apenas duas obras: a música incidental para “A tempestade” escrita pelo finlandês Jean Sibelius em 1926 e o ballet “Romeu e Julieta” do russo Sergei Prokofiev, obra de excepcional inspiração, composta em 1939. Em 1953 Igor Stravinsky escreveu “Três canções com poemas de Shakespeare” para meio-soprano e conjunto de câmera, uma obra pouco conhecida do autor. Duas óperas se destacam no século XX. Uma do compositor inglês Benjamin Britten: “Sonho de uma noite de verão”. Escrita em 1959 é uma das melhores óperas inglesas do século, mas o destaque maior é “Lear”, ópera que o compositor alemão Aribert Reimann escreveu em 1975. Dedicada ao grande barítono Dietrich Fischer-Dieskau, contém uma música de grande originalidade e tensão dramática. O libreto escrito pelo escritor alemão Claus Henneberg segue de forma bem fiel a tragédia “Rei Lear”. Podemos dizer que esta obra é realmente um marco na história da ópera. No século XXI já apareceram duas obras interessantes. Inicialmente a ópera “A tempestade” do compositor inglês Thomas Adés, escrita em 2003. Sua estreia em Londres em fevereiro de 2004 foi um estrondoso sucesso, e em sua produção do Metropolitan Opera de Nova York, em 2012, foi exibida em cinemas em todo o mundo. A última obra que citarei nesta extensa lista de composições inspiradas por Shakespeare é uma composição bem recente e que certamente se firmará no repertório. Trata-se de uma obra do compositor dinamarquês Hans Abrahamsen. Compositor de grande inspiração e competência escreveu em 2013 a obra “Let me tell you”, um ciclo de 7 canções para soprano e orquestra com texto de Paul Griffiths, que trata da personagem Ophelia do drama Hamlet. Com esta bela composição contemporânea fica bem clara a versatilidade de Shakespeare, um autor que inspirou obras barrocas, românticas e modernas. Realmente uma eterna e inesgotável fonte de inspiração.

Vídeos

O genial “Scherzo” da música de cena de “Sonho de uma noite de verão” de Mendelssohn

Uma versão completa da “Sinfonia dramática Romeu e Julieta” de Hector Berlioz

Cena final da ópera “Lear” de Aribert Reimann com Dietrich Fischer-Dieskau

Let me tell you, a genial obra de Abrahamsen inspirada na Ophelia de Hamlet

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