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Marcelo Marchioro em meio ao seu imenso acervo
Marcelo Marchioro em meio ao seu imenso acervo| Foto:
Marcelo Marchioro em meio ao seu imenso acervo

Marcelo Marchioro em meio ao seu imenso acervo

Tarefa muito penosa escrever um texto sobre Marcelo Marchioro. Penosa pela atroz doença (esclerose múltipla) que o matou aos poucos nos últimos 15 anos. Ao falecer no último dia 24 Marcelo tinha 62 anos de idade e completaria 63 anos no próximo dia 11. Marcelo foi um grande amigo pessoal, e mesmo doente nunca esqueceu a minha data de aniversário e me telefonava anualmente, cada vez com a voz mais alquebrada. Ele foi um excepcional Diretor de Teatro, com uma enorme versatilidade, encenou dezenas de peças, sendo que se tivesse que citar uma destacaria a excepcional montagem que ele fez de “As bruxas de Salem” de Arthur Miller no Guarinha em 1990, a melhor montagem teatral que assisti nestes 29 (quase 30) anos de Curitiba. Mas ao mesmo tempo Marcelo foi um dos melhores diretores cênicos de ópera que o Brasil já pode ver. Ele amava música, e fazia todas as marcações cênicas em uma partitura, respeitando de forma impecável todas as necessidades musicais do texto.
Se por um lado esta tarefa (a de escrever um texto sobre o Marcelo) é penosa, por outro lado me sinto privilegiado por ter trabalhado junto a este gigante das artes cênicas em algumas históricas montagens de ópera na capital paranaense. Como, involuntariamente ou propositadamente, a história artística desta cidade é esquecida, e os personagens que a fizeram são desprezados, pretendo aqui deixar de forma bem clara e contundente os trabalhos que Marchioro, como diretor cênico e eu, como maestro, fizemos juntos.

Desde que cheguei em Curitiba em 1985, atuando como maestro da Orquestra Sinfônica do Paraná, estabeleci rapidamente uma ligação de amizade com Marcelo. Quando em 1989 o então secretário de cultura, René Dotti, resolveu apoiar e profissionalizar as montagens de ópera o primeiro título escolhido foi “Don Giovanni” de Mozart. Estava tudo certo para eu e Marcelo fazermos nosso primeiro trabalho junto, até que o nome dele foi barrado e em seu lugar convidado alguém com mais “glamour”, um cineasta que prefiro não declinar o nome, cujo trabalho esteve próximo a uma piada de péssimo gosto. Na segunda ópera pensada em termos profissionais Marchioro encenou Tosca de Puccini, que foi regida por Alceo Bocchino. Um grande sucesso. Só no ano seguinte, quando a pessoa que insistiu no tal do cineasta foi afastada, é que finalmente pudemos colocar em prática nossas afinidades.

O Barbeiro de Sevilha – Temporadas de 1990 e 1992

Ao imaginarmos juntos uma montagem de “Il Barbieri di Siviglia” imediatamente fomos em busca da edição de Alberto Zedda, muito mais próxima do texto original de Rossini. Marchioro percebeu sozinho as vantagens desta edição, que foi executada no Brasil pela primeira vez nesta montagem. Milimétricamente colocamos a música junto com a ação, e como eu próprio tocava no cravo os recitativos, cada acorde, cada escala, tinha um equivalente cênico. Marcelo concebeu a ópera de tal forma que cada personagem tinha um “duplo” feito por um ator ou acrobata ligado à “Commedia dell’arte”. Como detalhe histórico interessante o “duplo de Rosina” (a Colombina), magnificamente interpretada por Denise Sartori, era a até então desconhecida Letícia Sabatella. Foi nesta montagem que ela foi descoberta por um homem responsável pelo “casting” da Rede Globo (Emílio di Biase). Junto ao genial cenário de Felipe Crescenti e dos figurinos estonteantes de Leda Senise, a música parecia fluir de maneira mágica. Vale acrescentar que na temporada de 1990 descobrimos três grandes talentos paranaenses no campo do canto lírico: a já citada Denise Sartori, Pepes do Vale e Divonei Scorzato. Quem fazia o Fígaro era o excelente barítono de Brasília Francisco Frias, e dois “monstros sagrados” fizeram parte do elenco: Carmo Barbosa, no papel de Bartolo e Wilson Carrara no papel de Basílio. O sucesso foi tão grande que toda a produção foi reposta em 1992. Mais uma vez interferências indevidas vetaram o nome de Frias, e recomendaram alguém que não deu conta do recado. Felicidade: Fígaro então foi interpretado magistralmente pelo grande barítono Sebastião Teixeira. Nesta segunda temporada de “Il Barbieri di Siviglia” o êxito foi ainda maior e esta produção foi apresentada também no Teatro Municipal de São Paulo.

Elencos:

Temporada 1990 – de 14 a 19 de agosto

Rosina: Denise Sartori
Conde de Almaviva: Ivo Lessa
Figaro: Francisco Frias
Bartolo: Carmo Barbosa
Basílio: Wilson Carrara
Berta: Elizabeth Campos
Fiorello: Pepes do Vale
Oficial: Divonei Scorzato
Ambrogio: Mário Schoemberger (sim, o grande ator)

Temporada 1992 – de 18 a 22 de novembro
Rosina: Denise Sartori
Conde de Almaviva: Paulo Mandarino
Figaro: Sebastião Teixeira
Bartolo: Sandro Christopher
Basílio: Jeller Felipe
Berta: Márcia Degani
Fiorello: Pepes do Vale
Oficial: João César Peceggini
Ambrogio: Eneas Lour

Segundo ato de La Bohéme na encenação de Marchioro. Claudia Riccitelli no papel de Musetta

Segundo ato de La Bohéme na encenação de Marchioro. Claudia Riccitelli no papel de Musetta

La Bohéme – Temporada de 1994

Eu e Marcelo sonhávamos alto. Chegamos a pensar em montar Lulu de Alban Berg, mas constatamos que nossa estrutura era muito limitada para tal empreitada. Mas como resultado de nosso estudo sobre a obra Marcelo montou o díptico de Wedekind, Lulu (A caixa de Pandora e O espírito da terra), numa montagem teatral soberba. De Lulu passamos a algo mais factível: La Bohéme de Puccini. De início pensamos que se tínhamos que montar algo tão popular tínhamos que fazê-lo de forma exemplar. O elenco deveria ser perfeito, e conseguimos um verdadeiro espírito de “companhia”. Com pouquíssimo dinheiro conseguimos, por amizade, trazer, além do elenco, um dos melhores cenógrafos da época, Hélio Eichbauer. Nesta produção alguns nomes não podem ser esquecidos, inclusive por sua incisiva observação do gestual frente À música. Falo de Sandra Zugman, que junto a Marcelo deram toda a leveza e fluência ao espetáculo. A emoção estava à flor da pele. Marcelo aprofundava os sentimentos, a ponto de ter que me vigiar para não embarcar na pura emoção e esquecer da minha função de regente. Em duas récitas lembro que segurei as lágrimas em mais de um ponto da partitura. Marcelo fez de La Bohéme um lindo hino Às relações humanas. Uma direção mais do que impecável: impecavelmente humana. O elenco, formado pela nata dos cantores líricos brasileiros, soube absorver cada momento desta montagem, desde as semanas de preparação até as apresentações. Isto tudo com um orçamento que somava aparentemente um quinto do custo de qualquer produção em São Paulo ou no Rio de Janeiro.

Elenco: temporada de 1994 – de 24 de setembro a 2 de outubro

Marcelo: Sandro Christopher
Rodolfo: Fernando Portari
Colline: Pepes do Vale
Schaunard: Sebastião Teixeira
Benoit/Alcindoro: Caio Ferraz
Mimi: Mônica Martins
Musetta: Cláudia Riccitelli
Parpignol: Ivan Moraes

La Cenerentola – Temporada de 1997

Apesar dos anos que separam as produções este espírito de “companhia” se aprimorou ainda mais nesta montagem de La Cenerentola de Rossini. Marcelo me perguntou mais uma vez se havia uma edição de Alberto Zedda, e com enorme esforço conseguimos alugar as partituras. Mas valeu a pena!!! Marcelo imaginou uma comédia refinada e certas cenas beiravam o virtuosismo em termos cênicos. Quando falo disso lembro das marcações que ele fez para o dueto dos barítonos, Dandini e Don Mangifico, interpretado de forma soberba por Pepes do Vale e Sandro Christopher. Os papéis que geralmente são considerados menores, os das irmãs da Cinderela, foram arrebatados por um gestual fantástico inventado por ele, e que foram muito bem compreendidos por Simone Foltran e Sivia Suss. Silvia Tessuto e Fernando Portari, que interpretaram Angelina (a Cenetrentola) e Dom Ramiro, souberam seguir as marcações de Marchioro, mais uma vez assessorado por Sandra Zugman. Vale lembrar que esta foi a primeira montagem da ópera feita por um elenco inteiramente brasileiro. Leda Senise demonstrou um virtuosismo (pouquíssimo dinheiro) em seus figurinos e cenários e até uma animação foi feita por Valencio Xavier para ser exibida durante a abertura “na faixa”.

Elenco: Temporada 1997 – de 23 a 29 de abril

Angelina (La Cenerentola): Silvia Tessuto
Dom Ramiro: Fernando Portari
Dandini: Sandro Christopher
Don Mgnifico: Pepes do Vale
Clorinda: Simone Foltran
Tisbe: Silvia Suss
Alidoro: Lukas D’Oro

Curitiba e sua decadência cultural

O excepcional trabalho de Marchioro como diretor cênico de óperas em Curitiba não se limitou a estas três produções que eu regi. Como disse acima ele encenou Tosca de Puccini em 1989, junto ao maestro Alceo Bocchino, a “Ópera dos três vinténs” de Kurt Weill em 1994 (direção musical de Guga Petri) e Gianni Schicchi de Puccini em 2005 (direção musical de Alessandro Sangiorgi). De forma triste vemos que Curitiba em termos culturais não tem mais capacidade de reeditar tudo o que foi explanado acima simplesmente por absoluta falta de recursos e incentivo. O Coro Teatro Guaíra, peça chave em todas as óperas, e que atuava com uma disposição incomum dirigido por Emanuel Martinez, foi extinto. O TCP, Teatro de comédia do Paraná, também foi extinto. Sim, este TCP, que colocou em cena dezenas de trabalhos maravilhosos como “New York, Por Will Eisner” dirigido por Edson Bueno e “A Vida de Galileu Galilei” dirigido por Celso Nunes (com Paulo Autran) não existe mais. Tudo extinto, tudo pobre. Neste aspecto a doença de Marcelo coincidiu com este desolador cenário. Sim, vejo a morte de Marcelo Marchioro como mais um duro golpe na combalida cultura paranaense.

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