• Carregando...
Ética do amor
| Foto:

Ódio. Palavra do momento. Coisas da radicalização política em que nos metemos. Gente de um lado acusa gente do outro de propagá-lo. Tiro trocado. Por vezes, chumbo grosso. Com balas perdidas aqui e acolá. Entre os inocentes feridos, um pouco do que resta de esperança. Mas, dizem, a esperança é a última que morre. E, para reavivá-la, muitas vezes é necessário tratamento de choque. Sair da sombra para a luz.

Então pensei: por que não? Inverter o sinal. Abordar não o fel. Mas o mel da vida. Não é o que, no fundo, todos querem para si?  Tá aí. Sem medo de ser piegas, já que a abordagem vai muito além da água-com-açúcar, o tema de hoje é o amor. Uma filosofia do amor. Melhor saber tudo o que ele é. Porque ele é mais do que costumamos lembrar. Inclusive uma ética. Uma forma de encarar a vida.

O pensador alemão (1904-1997) Josef Pieper tem uma análise simples – e graciosa como a só a simplicidade pode ser – para a grande questão: o que é o amor? Diz ele que amar é o grau mais elevado do gostar. Pode-se gostar de um vinho, uma comida, um trabalho, amigos, familiares, namorada. Até aí, nada de mais. Aqui vai a originalidade: gostar (e amar) é aprovar a existência do que se gosta. É como dizer: “Que bom que isso existe”; “Que maravilhoso que você exista”.

A aprovação é, por sua vez, a expressão de uma vontade: eu quero que esse algo ou alguém exista e continue a existir. Trata-se também de um endosso que aumenta à medida que cresce o grau do gostar: eu aceito aquilo que é do jeito que é; não pretendo alterar o que está ali.

Aqui abro um parêntese no pensamento de Pieper para recorrer ao pai da psicologia analítica: Carl Gustav Jung (1875-1961). Ele dizia que o oposto do amor nem mesmo é o ódio. Mas o poder – a capacidade de impor vontades. Essa imposição – que se manifesta das mais variadas formas, desde pessoais até políticas – implica necessariamente uma mudança naquilo que está dado. Por isso Jung argumenta que à medida que o poder cresce, diminui o amor. E vice-versa. Nesse sentido, amar é rebelar-se contra o poder.

Agora, voltemos a Pieper. Ele observa que a alta intensidade de aprovação justifica a própria existência da pessoa que é alvo do amar. E isso a motiva a ser plenamente o que ela é. Ela floresce. Transforma-se em si mesma – aquele ser que esconde em algum canto dentro do peito. Se isso não ocorre, há de se questionar se é amor.

Meia-volta volver. Já sabemos o que o gostar provoca no alvo do gostar. E no agente? O que ele ganha? Este é um paradoxo. O amor tem de ser uma dádiva. Sem esperar prêmio em troca. Ao se exigir pagamento, começa a deixar de ser amor. É como tirar a flor do jardim para se apropriar de sua beleza e tê-la mais perto: vai murchar.

O amor, portanto, tem de ser gratuito. Esse, por sinal, é a origem daquela forma de amor que a tradição cristã considera mais alta, sem sentido romântico, voltada até mesmo àquele que se desconhece, mas que partilha conosco a humanidade: a caritas (termo latino cuja origem é o grego chàris, graça).

A palavra em português, “caridade”, acabou por assumir certa conotação de “esmola”. Não é isso. Trata-se de qualquer ação altruísta. Tudo o que se dá a alguém de forma desprendida. Pode ser simplesmente um pouco de atenção. Pode ser o reconhecimento de que o outro tem o direito de ser do jeito que é, e pensar do jeito que pensa – sem que eu precise modificá-lo ou impor minha forma de ser.

Mas como não esperar nada em troca? Não precisa arrancar os cabelos. Desejar a retribuição é absolutamente humano. Pieper – e ele é um filósofo cristão – diz que só Deus pode amar de forma absolutamente desprendida. Mas o ideal pode permanecer como algo a ser buscado. Como uma ética. Uma forma de tentar viver.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]