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Detalhe da capa do livro de Marcia Tiburi/Divulgação
Detalhe da capa do livro de Marcia Tiburi/Divulgação| Foto:

Sem querer comecei uma série de colunas sobre vocação. E como disse na primeira frase da série, falar de vocação nos dias de hoje é pedir para ser mal entendido. Ainda mais quando se usa como exemplo de vocação corrompida a do servidor público.

Muitos servidores, amigos inclusive, sentiram-se ofendidos, achando que eu estava generalizando demais. Compreendo o incômodo, mas eu falava do que se tornou regra geral, algo bastante óbvio para quem tem contato com o serviço público. Que há exceções, é também óbvio, mas apenas confirmam a regra, não a desmentem.

Em verdade, a maior culpada pela corrupção da vocação do servidor público é a cultura brasileira. A cultura estabelece os limites do pensável e imaginável. Assim, quando temos uma cultura como a nossa que trata o serviço público como solução de segurança, de estabilidade da vida material, estranho seria se alguém prestasse concurso tendo o servir ao público como interesse principal.

Mas por que nossa cultura é assim? Eis aí uma pergunta indicando outro tipo de vocação, a do intelectual. Quem se sente chamado por perguntas assim está sendo chamado a compreender, esclarecer, iluminar, explicar, orientar, ou seja, está sendo chamado a inteligir, o que é a vocação intelectual propriamente dita. Seu compromisso é com a verdade, nada mais, nada menos do que a verdade. Sua realização se dá através do amor à verdade que transforma o amador na cousa amada.

Mas se a vocação do servidor público está corrompida, nada se compara à corrupção intelectual que nos soterra. E o que acontece quando a vocação intelectual é corrompida? A consequência é, primeiro, burrice endêmica pela sociedade, estupidez da braba mesmo, daquelas de dar vergonha alheia imensa e, segundo, a canalhice como modo de vida do intelectual.

Um exemplo escolhido dentre inúmeros. Uma intelectual famosa na atualidade é a doutora em filosofia, Marcia Tiburi, autora do provocativo “Como conversar com um fascista”. No livro ela define um fascista como aquele que perdeu a “dimensão do diálogo” porque perdeu a “dimensão do outro”. Ou seja, alguém que não consegue se relacionar com quem pensa diferente dele.

Não se considerando, por óbvio, uma fascista, como, então, a própria autora compreende quem pensa diferente dela, o que ela chama de “pensamento conservador”? Em resumo, o que ela disse na página 27 do seu livro: “O cerne do pensamento conservador é, em seu íntimo, opressor (…)”. Como diria Paulo Francis, waal! Isso é, evidentemente, um reducionismo absurdo – além de flagrantemente errado. Qualquer um que conheça um mínimo do pensamento conservador percebe que seu cerne não tem nada de “opressor” – termo, aliás, que só serve a uma determinada visão de mundo puramente ideológica, daquelas que a autora supostamente condena.

Ou seja, ao tratar o pensamento conservador como opressor, sequer citando algum pensamento que comprove sua afirmação, a autora incorreu no mesmo autoritarismo que disse rechaçar, como se vê na página anterior àquela afirmação: “Em outras palavras, o sujeito autoritário ‘pergunta’ e ‘responde’ a si mesmo a partir de um ponto de vista previamente organizado no qual, a cada momento, o outro precisa ser descartado.”

O pensamento conservador não faz parte do livro, apenas aquilo que a autora projeta como sendo assim, tendo sido descartado já no início da obra para, livre do outro, poder conversar apenas com quem comunga da sua opinião. Pelo seu próprio critério, portanto, quem está sendo fascista aqui?

Se o leitor não está cego e surdo assim para o outro, achará até engraçado ler o restante do livro, porque testemunhará uma confissão involuntária das consequências desse fascismo, apontadas com acerto pela autora, ainda que nem desconfie esteja dizendo também de si.

Por exemplo, do descarte do outro nasce o ódio pelo diferente, como nos dá prova cabal um dos prefaciadores, o deputado Jean Willys: “(…) a maioria daqueles que fazem menção ao ‘comunismo’ ou ao ‘socialismo’ deixaram claro quais as fontes de suas afirmações (…): os colunistas da revista marrom semanal [deduzo seja a Veja]; o senil reacionário que se diz ‘filósofo’ [referindo-se a Olavo de Carvalho]; e a família de parlamentares (deputado federal, deputado estadual e vereador) que parasita o poder público para difamar adversários e estimular o fascismo.” Que bom o prefaciador não está difamando adversários nem estimulando o fascismo, não é mesmo?

Outra consequência desse fascismo reinante – sempre conforme conceituado pela autora – é a disseminação da burrice, no que retorno ao tema da vocação do intelectual. Para a autora, “vivemos no império da canalhice onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu. Desvendá-la não tem mais muito valor. Ela se transformou no todo do poder”. Só discordo quanto a achar que desvendá-la não tem muito mais valor. Quando se vive no império da burrice, desvendá-la é o primeiro e talvez único valor que sobrou a todo e qualquer intelectual digno dessa vocação.

Terminando a leitura do livro, fiquei com uma dúvida: como conversar com intelectuais como Marcia Tiburi? Fazendo o que ela não faz: considerando o outro e tentando criar a tal da “dimensão do diálogo”. Por isso li seu livro, por isso escrevo sobre ele. Porque sou daqueles chamados por perguntas como esta e como vivemos em uma época em que “intelectuais” se acanalharam, só resta aos que tentam amar a verdade se tornar a exceção à regra: não incorrer no ódio a quem pensa diferente, nem dizer “amém” a tudo que vem da turminha da qual faz parte, seja conservadora ou progressista. Mas o texto ficou longo demais e essa segunda parte fica para a semana que vem.

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