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Demorei muito tempo para descobrir o significado do carnaval. Talvez por isso tenha desprezado tanto essa festa da satisfação. Não lembro de ter pulado carnaval nos meus 40 anos de existência. Nem na matinê, fingindo ser gente grande, eu fui. Nada contra. Se desprezo agora, assim presumo, é mais por razões estéticas e excesso de bom gosto — meu modo humilde de confessar a vocês que, na verdade, sou reservado. A questão se resume no seguinte: ainda que foliões pós-modernos se esqueçam e enxerguem tudo como lantejoulas, putarias, abadás e problematizações sociais, só há um sentido para a coisa toda: o religioso. Ignore ou não, fora da experiência sagrada não há carnaval.

Hoje, abre-se o tempo litúrgico da Quaresma porque se interrompe o Tempo Comum. Nesse sentido, carnaval é o rito de passagem, a consumação sacramental de um ciclo sem o qual nada seríamos senão meros organismos biológicos famintos por comida e sexo. Embora miseráveis, esperamos ser um pouco mais do que isso. Ninguém precisa ser cristão para reconhecer ou aceitar a tese de que o mistério da história é o mistério da fé. Entre o desespero e a promessa, entre a tristeza e a fantasia, entre o temor e a esperança não há euforia que não seja precedida pela tomada de consciência do trágico. Não há história sem transcendência. Paradoxalmente, por mais que relutemos, somos finitos, somos pó e assim continuaremos. Diz o pregador, filho de Davi: “Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós”.

Por sua vez, os mitos gregos também não escondiam de seus fiéis: a vida é efêmera e o homem, tomado de preocupações vazias. Na Ilíada, Homero diz que “as gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores”. Umas “os ventos atiram no solo, sem vida”; outras “brotam na primavera”. O mais importante é saber que “os homens desaparecem ou nascem da mesma maneira”; afinal, somos uma “pobre raça que cresce e seca”. O poeta grego Simônides não melhora a situação humana: os homens, diz ele, “são criaturas de um dia, que vivem como gado, sem saberem por qual caminho Deus conduzirá cada um de nós ao seu destino”. Já em Píndaro, autor das Odes Triunfais, tudo o que ameaça a felicidade e a prosperidade dos homens nasce do próprio homem: orgulho, excesso, insolência, inveja e a incapacidade de reconhecer os próprios limites. Resumindo: se o problema é nascer, morrer não será a solução.

Nessa época, pessoalmente, nunca deixei de meditar sobre o sermão do padre Antônio Vieira para a Quarta-Feira de Cinzas: “Aos vivos, que direi eu? Digo que se lembre o pó levantado que há de ser pó caído. Levanta-se o pó com o vento da vida, e muito mais com o vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida, por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo”. Em uma palavra: “Lembra-te, homem, que és pó, e em pó te hás de converter”. Como esquecer? Ninguém esquece…

Também sempre lembro de T.S. Eliot em seu poema Quarta-Feira de Cinzas

Cantavam os ossos sob um zimbro, dispersos e alvadios,
Alegramo-nos de estar aqui dispersos,
Pois uns aos outros bem nenhum fazíamos,
Sob uma árvore ao frescor do dia, com a bênção das areias,
Esquecendo uns aos outros e a nós próprios, reunidos
Na quietude do deserto. Eis a terra
Que dividireis conforme a sorte. E partilha ou comunhão
Não importam. Eis a terra. Nossa herança.

Portanto, sem ingenuidades, não há ideologias ou parafernálias tecnológicas, não há ideais ou algoritmos capazes de apagar o punhado de folhas secas que nós somos. Para qualquer tentativa desse tipo, seria preciso varrer o pó para bem longe, destruí-lo. Carnaval nada mais é do que a nossa tentativa fracassada de sacralizar a finitude humana; o próximo passo será o de buscar reconciliação. O vento da vida pode iludir, mas nunca chegará a ser bonança. O pó levantado é pó caído. Não há contraste entre o passado de Padre Vieira e o nosso presente. Não há contraste entre o passado distante de Homero, Simônides e Píndaro, o passado de Eliot e o nosso presente. A inconstância do vento da fortuna permanece inconstante; as cinzas de ontem são as de hoje.

Pagã ou cristã, toda perdição carnavalesca é humana em sua essência. Chegou o momento de expiar a culpa — privada ou coletiva — não por crimes cometidos contra a ordem pública, mas por excesso de humanidade na alma, ou seja, por arrogância, preguiça, concupiscência, orgulho, inveja, ganância e rancor. No silêncio das cinzas, esforçamo-nos para recuperar o paraíso perdido. É hora de reconciliação, de buscar a terra sem mal — para lembrar dos guaranis. A felicidade e a certeza de ontem passaram. Sempre passam. Sempre. O samba passou. O feriado acabou. O brilho exauriu. A criança dormiu…

Porque ninguém suportaria viver eternamente no país da Cocanha — a utopia do século 13 que só poderia existir como fantasias do imaginário corrompido — empanturrado de liberdade, obscenidade, comida, juventude e prazer. Chegou a ressaca. Sempre chega. Sempre. Se o problema é a escassez e a miséria, tampouco haverá solução na abundância e riqueza. Multiplicar o pó é continuar pó. No silencio das cinzas, impõe-se a pergunta: “tens em depósito muitos bens para muitos anos; descansa, come, bebe e folga”? Não, nada disso, pois “mesmo esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” Essa é a ordem das coisas. E o único problema realmente sério é saber se mesmo assim a vida vale a pena ser vivida.

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