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Arte e liberdade de expressão (I)
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Liberdade de expressão tornou-se o foco do debate acerca da mostra de arte Queermuseu, promovida pelo Santander Cultural e cancelada após protestos e boicote ao banco, que eclodiram espontaneamente via redes sociais e depois foram fomentados pelo MBL. De tudo o que pude ler a respeito – e não foi pouca coisa, já que houve uma efervescência opiniões sobre o caso – selecionei alguns textos de argumentação mais consistente.
Rodrigo Cássio Oliveira entende que “a maioria das objeções às obras expostas em Porto Alegre segue a mesma lógica de censura que se tornou frequente nos meios culturais colonizados pela esquerda politicamente correta”. Assim como no humor, a liberdade de expressão nas artes não pode ser restringida só porque alguém pode se ofender com o que se está a retratar. “O afrontamento, a provocação ou a profanação são componentes estéticos de várias expressões artísticas, incluindo charges políticas e obras de arte transgressoras”, diz Oliveira. É nesse ponto em que a discussão acerca do que é ou não é arte se torna relevante, e o autor, por mais que não aprecie o que foi exibido no Queermuseu, não deixa de atribuir o caráter artístico às peças da mostra. Ainda destaca a visão de John Stuart Mill acerca da liberdade de expressão: uma perspectiva que exalta esta liberdade como um dos pilares da democracia, o que, segundo o autor, tornaria nociva a tentativa de cerceá-la; portanto, boicotes não são admissíveis. No entanto, Oliveira faz apenas uma ressalva: o bem-estar físico e psicológico dos indivíduos prevalece sobre o direito de expressar-se livremente.

Esteticismo
É evidente que o pessoal à esquerda espumaria de raiva pelo cancelamento do Queermuseu, pelo simples motivo de que eles, partidários de uma agenda política que abrange o movimento LGBT, perderam uma batalha no cenário maior da guerra cultural. Quanto aos defensores da mostra amparados numa visão liberal, muitos deles pareceram ignorar a própria sensibilidade estética, ao avaliar as obras exibidas na mostra, que sinalizaria que aquilo não passava de panfleto político pernicioso, e que não tinha nada de artístico. De certo modo, sua argumentação navegou muito mais pelo terreno das abstrações, sem dar a devida atenção aos fatos: crianças visitando uma mostra com conteúdo pornográfico e ofensivo à fé cristã, que incluía pelo menos um objeto de culto vilipendiado e que custou aos cofres públicos a isenção fiscal da instituição que a patrocinou. Com isso, descaracterizaram a liberdade de expressão ao tratá-la de modo fetichista. Alinhado a esse ponto de vista está Elton Flaubert, que escreveu artigo em resposta a Rodrigo Cássio Oliveira. Flaubert comenta a explicação de Mario Vieira de Mello sobre o que é o esteticismo – uma “a compreensão estética (das artes, da literatura, das humanidades etc.) como se ela existisse em si mesma e não tivesse uma relação mais ampla com o espírito” – que permitiu o esvaziamento de significado da arte, vez que relegada a mero propagandismo de ideias. Ainda aponta a raiz romântica do pensamento de Stuart Mill, que, mesmo involuntariamente, abre terreno para a tirania; e também mostra as incoerências na argumentação de Rodrigo Cássio.

Arte e moralidade

Rodrigo Lemos, por sua vez, responde Elton Flaubert recordando o momento histórico em que o esteticismo surgiu e qual era sua motivação: “uma revolta de certos artistas e críticos do século XIX contra parte da crítica burguesa (em aliança com homens de justiça como o célebre promotor Ernest Pinard) que aspirava a uma arte moralizante, asséptica de qualquer conteúdo insultante”. E os esteticistas estavam corretos. Só um olhar míope poderia banir Madame Bovary de circulação por “glorificação do adultério”, mas foi o que aconteceu à época. Aliás, a multiplicidade de interpretações é característica de grandes obras de arte, daquelas que de algum modo conseguiram retratar a complexidade do real. Claro, é possível atribuir forçosamente vários significados a uma obra de arte que, em verdade, não comunica nada. Lembro da cena de um filme em que um casalzinho de hipsters vai a uma exposição de arte moderna, param diante de uma escultura nonsense qualquer, e a moça, tentando parecer inteligente, diz “isso expressa tanto, dizendo tão pouco”, e então eles ficam entediados e vão ao cinema. Evidentemente, não é a esse tipo de “expressa tanto” que me refiro. Mas, como o nível de discurso em que a arte se encontra diz respeito à expressão de impressões – o que a afasta do reino da retórica, da lógica e da dialética – sempre há espaço para ambigüidades. Um artista talentoso será aquele que conseguirá trazer uma forma primorosa para expressar uma impressão genuína. Feitas essas considerações, creio eu que, no caso de boa parte das obras expostas no Queermuseu, não há como afirmar com certeza que havia intenção por parte dos artistas em fazer apologia ao que quer que fosse. O mesmo não se pode dizer a respeito da curadoria da mostra, que claramente a preparou com um objetivo pedagógico. Pergunta-se Lemos: “Como convencer o público, quando a polêmica estoura, de que a arte é um espaço social de alguma forma especial se a própria curadoria parece encara-la como arma na guerra da cultura?”.

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