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Ruy Castro: a baixa gastronomia é a cidade viva
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Ilustração de Guilherme Caldas
Ruy Castro, biógrafo de Nelson Rodrigues, Mané Garrincha e Carmen Miranda, entre outros bambas

Difusor do termo “baixa gastronomia” (cunhado, na verdade, pela mulher dele, a também escritora Heloísa Seixas), Ruy Castro passou pela cidade. Veio a convite da Universidade Positivo falar do centenário de nascimento do genial Nelson Rodrigues.

Mas nós fomos atrás de Ruy Castro falar do que nos interessa. E ele, grande figura, falou, e muito.

Foi irônico com bares meticulosamente projetados por arquitetos da moda para parecerem botequins cariocas. “Não é nada disso. O grande botequim carioca é aquele perto da sua casa, onde você vai a pé, descalço, de bermuda, de pijama, pelado, sem dinheiro, sem tomar banho, onde estão todos os seus amigos, o cara atrás do balcão te conhece. Você encosta a barriga no balcão e está em casa.”

Falou muito do que parece ser sua obsessão baixo-gastronômica do momento: o bolinho de feijoada do Aconchego Carioca. Tirou uma onda com “viadagem de chef”: “se você for a qualquer restaurante e, no menu, o nome do prato não explicar o que ele é, e a descrição abaixo tiver mais de meia linha, desista. Daí você vai comer e e o prato não é tão bom quanto a descrição dele no cardápio.”

Mas o melhor momento da conversa ficou para o final. Ao explicar a relação íntima entre os cariocas e seus botequins, Ruy falou do “segredo da baixa gastronomia ser uma coisa tão presente” no cotidiano carioca: “ocupar a cidade. É a identidade do carioca com a rua, e o botequim é a continuação da rua, então cuida-se muito disso.”

Nestes tempos em que parte considerável dos curitibanos opta por (ou aceita) viver trancado em espaços fechados e privativos (shopping centers, condomínios fechados etc.), é sempre o caso de lembrar quão importante é ocupar a cidade, lotar botequins, encher as calçadas com um copo de cerveja na mão. Fazer, enfim, como bom carioca, e ser visto publicamente não trabalhando.

Com vocês, Ruy Castro e a baixa gastronomia.

Rafael Martins – Foi você quem cunhou o termo “Baixa Gastronomia”?

Ruy Castro – Acho que pelo menos o divulguei. O verdadeiro autor da expressão é a Heloísa Seixas, minha mulher. Ela falava muito sobre isso, e aí botei o termo num artigo na revista Classe, que circulava nos aviões da TAM, e o texto fez um certo sucesso. Daí o botequim Pirajá, de São Paulo, que é um botequim temático carioca, ou seja (irônico), gostaria de ser um botequim carioca, fez um festival de comida de botequim e deram esse nome, baixa gastronomia, e fizeram um grande bafafá, há uns cinco anos. Mas é isso – até então, não me lembro de ver a expressão usada por escrito, só a Heloísa falando.

Guilherme Caldas – Perguntamos às pessoas do grupo o que gostariam de saber de você, e uma das que nos foi passada foi sua receita inesquecível em botequins.

Ruy Castro – Ah, há várias. Se puder, saio todo dia de casa para comer em botequim. Outro dia mesmo levamos, eu e Heloísa, minha filha, que mora em Portugal, e meu neto de um ano de idade para comer a empadinha de camarão e o caldinho de siri do botequim O Caranguejo, em Copacabana, que é uma coisa espetacular. Quando podemos, vamos à Praça da Bandeira comer o bolinho de feijoada, uma das últimas… Não é uma das últimas, já tem uns dez anos, mas só agora o pessoal de fora do Rio está descobrindo o conceito. Já, já vai chegar a São Paulo, pra você ver como São Paulo está adiantada .

Rafael Martins – O Rio é a pátria da baixa gastronomia?

Guilherme Caldas – …a terra prometida?

Ruy Castro – Acho que sim, pois lá sempre se praticou isso, mesmo quando não havia esse nome, não se pensava no assunto nem nada. Os botequins do Rio já cultivavam a tradição de fazer comidas gostosas. Quer dizer – o lugar podia ser repulsivo, o banheiro podia ser um desastre, o balcão podia ser engordurado, os frequentadores aquela coisa bem carioca, bermuda, chinelo, barba por fazer, o sujeito que come fiado e ainda pede um troco emprestado ao dono do botequim (risos)… Essa coisa do botequim carioca, eis o erro de quem tenta copiar fora da cidade, achado que é só fazer uma calçada de Copacabana e botar umas fotos da Mangueira e da torcida do Flamengo na parede, um prato com ovo colorido no balcão. O botequim carioca não é nada disso. O grande botequim carioca é aquele perto da sua casa, onde você vai a pé, descalço, de bermuda, de pijama, pelado, sem dinheiro, sem tomar banho, onde estão todos os seus amigos, o cara atrás do balcão te conhece. Você encosta a barriga no balcão e está em casa. Esse botequim, por mais sórdido que seja, sempre se preocupou em fazer comida gostosa. O bolinho de feijoada, por exemplo, é uma coisa meio fresca, até. Parece um bolinho de bacalhau, mas no recheio vão feijão, toucinho, couve. É feito com tutu de feijão. Mas isso aí já é uma sofisticação. O botequim autêntico, tradicional, é o que faz o carrê de porco com alface, arroz, feijão…

Rafael Martins – O Nova Capela, por exemplo?

Ruy Castro – O Capela é famoso pelo cabrito. Sempre teve, e outras coisas muito boas, sem qualquer sofisticação. Um dia descobriram que o cabrito do Capela é uma coisa espetacular. Hoje, para ônibus na porta do botequim e desembarcam 98 paulistas para comer o cabrito de lá. Com isso, não vou dizer que perdeu a pureza – o cabrito é o mesmo de sempre. Mas há outros lugares que servem um cabrito tão bom quanto. Não é uma receita tão complicada. Ao passo que o bolinho de feijoada é uma criação exclusiva da mulher lá do Aconchego Carioca que foi copiado pelo botequim da frente, e o do lado. Agora, são três botequins na mesma rua que servem o mesmo bolinho de feijoada. Quer dizer – quando o lugar começa a ficar famoso demais porque tem isso ou aquilo e começa a ser frequentado pelos turistas, ele perde um pouco a sua característica original. Moacyr Luz, meu grande amigo, que não come mais em botequim por questões de saúde, diz que enjoou de comer em botequim com banheiro sujo, então só frequenta restaurantes metidos a besta. Duvido que tenha comido melhor.

Fernanda Ayres – E deve estar comendo menos, também, não?

Ruy Castro – Exatamente. Descobri uma coisa, recentemente: se você for a qualquer restaurante e, no menu, o nome do prato não explicar o que ele é, e a descrição abaixo tiver mais de meia linha, desista. Três linhas pra descrever um prato, uma viadagem, coisa de chef que quer valorizar o próprio trabalho. Daí você vai comer e e o prato não é tão bom quanto a descrição dele no cardápio.

Rafael Martins – Agora: é alta gastronomia ou baixa gastronomia, e ponto? Ou temos algo aí no meio disso?

Ruy Castro – No Rio essas coisas são difíceis de dividir, supondo que baixa gastronomia seja comida de botequim. Pois o carioca chama tudo de botequim, entendeu? O Antiquarius, principal restaurante português do Brasil, que serve o famoso arroz de pato, que nem em Portugal comi melhor, é um botequim. E por acaso é quase o meu botequim. Entro e saio de lá, peço comida por telefone, o que eles não fazem, em geral. Ou seja – servem quase como que um botequim.

Rafael Martins – E a baixa gastronomia de Curitiba? Já foi apresentado a ela? Conheceu algum botequim da cidade? Ou isso por aqui não existe?

Ruy Castro – Não, quando vim aqui uns dois ou três anos atrás, me levaram a um botequim que ficava aberto até tarde.

Guilherme Caldas – O Bar Palácio?

Ruy Castro – Talvez. Um bem antigo.

Guilherme Caldas – Não muito bem iluminado.

Ruy Castro – Não, bem escuro. Um pé direito enorme. Eu gostei pra burro.

Rafael Martins – Te levaram a um lugar legal. Porque aqui virou moda chamar arquiteto pra projetar botequim…

Fernanda Ayres – Uma coisa legal do Rio é que se tropeça em botequim, seja bar, restaurante, boteco. Percebe-se que lá lugares tradicionais não são destruídos para no lugar alguém construir algo que imita um armazém antigo. É triste ver isso.

Ruy Castro – Ah, isso no Rio não tem não.

Rafael Martins – O amor ao botequim fez o carioca zeloso de sua história gastronômica?

Ruy Castro – O carioca vive muito na rua. Ele tem a fama de que trabalha pouco. Na verdade, segundo o IBGE, é o povo que mais trabalha no Brasil. Você não vê o carioca trabalhando, como não vê o paulista ou o curitibano trabalhando. Pois o sujeito trabalha dentro do escritório, ou na fábrica, ou em casa. Mas vê o carioca não trabalhando, o tempo inteiro. E ele não trabalha durante muitas horas por semana. Ele não trabalha na praia, ele não trabalha na calçada do botequim, na praça. Por exemplo – se você for à Rua Gomes Carneiro, onde Millôr Fernandes tinha seu ateliê, há um botequim sórdido, chamado Zig Zag, que é um sucesso, tem uns 40 anos. Senta-se na calçada em cima do tonel de chope. É a identidade do carioca com a rua, e o botequim é a continuação da rua, então cuida-se muito disso. Se a comida não está boa, você reclama…

Guilherme Caldas – Ele ocupa a cidade.

Ruy Castro – Exatamente. Ocupa a cidade, o tempo todo. Talvez esse seja o segredo da baixa gastronomia ser uma coisa tão presente na cidade.

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