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Capa do livro de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes
Capa do livro de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes| Foto:
Capa do livro de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes

Capa do livro de Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes

Tempos atrás fiz um balanço aqui no blog dos lançamentos que trataram da história em torno do golpe de 1964, que fez 50 anos na virada de março para abril:

50 anos do golpe e algumas boas leituras

Entre os livros lançados, certamente um dos bons foi o do professor Marcos Napolitano, que fiz resenha aqui no blog:

Marcos Napolitano e a história do Regime Militar

O livro do Napolitano aproveitou o ensejo para fazer uma interessante avaliação histórica das origens do golpe, partindo para uma visão panorâmica do Regime Militar entre 1964 e 85, com destaque para a vida cultural, a repressão dos militares e a resistência dos intelectuais e da sociedade civil, entrando também nos delicados temas referentes à memória do Regime.

Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes fizeram o caminho para trás. Em seu livro, 1964 é o ponto de chegada. A história começa com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, acompanha as peripécias da rede da legalidade (que garantiu a posse do vice-presidente constitucional), as dificuldades para montar o gabinete parlamentarista, a instabilidade política do governo João Goulart, pressionado entre os radicalismos de direita e de esquerda.

A todo o momento os autores enfatizam o caráter aberto das decisões com que se deparavam os atores. Ressaltam o perigo das teleologias, ou do que uma professora minha chamava de “prever o passado” (a profª. Ana Maria Burmester, de cujas aulas no mestrado em história da UFPR sinto muita saudade). Destacam a tentação de considerar que os caminhos já estavam traçados. Em contraposição a isso, os autores procuram destacar as possibilidades que se abriam, as opções diversas, e uma especulação saudável sobre prováveis rumos caso as decisões fossem outras.

Mesmo com todo este cuidado metodológico, a gente termina a leitura do livro com uma sensação muito agonizante de que os caminhos escolhidos pelos agentes históricos fizeram do golpe uma coisa realmente inevitável.

Os radicalismos de direita e a cultura golpista enraizada na política brasileira foram fatores importantes. Mas eles estavam ali desde sempre – ninguém podia se surpreender com isso. A novidade talvez fosse o forte interesse dos EUA em apoiar um golpe contra Jango, por diversos fatores muito bem explicados no livro. Mas apesar de a ameaça militar norte-americana ter tido alguma influência no equilíbrio das forças internas, o livro demonstra que isso não foi um fator decisivo. Teria sido possível o governo João Goulart se sustentar, e o consenso em torno da via democrática tinha se demonstrado suficientemente forte desde o apoio de Lot à posse de Juscelino, e principalmente no episódio após a renúncia de Jânio.

A maioria da opinião pública, da imprensa, dos partidos e lideranças políticas, dos empresários e mesmo do comando militar tinham se mostrado favoráveis à legalidade e à constituição. E talvez a principal qualidade do livro seja contar, em riqueza de detalhes e cuidadosa pesquisa (artigos de imprensa e depoimentos, principalmente), como João Goulart deixou de ser o homem a ser defendido pelas forças democráticas e passou a ser percebido como uma ameaça à ordem constitucional.

Parece que a história caminhava mais rápido naqueles tempos, pois tudo se precipitou em meses. A renúncia de Jânio, a defesa de Jango como presidente constitucional, a articulação do parlamentarismo, a montagem do primeiro gabinete, o desmonte deste e a montagem de vários outros, as eleições de 62 e o crescimento vertiginoso do PTB (especialmente sua ala esquerda), o plebiscito do presidencialismo, a radicalização das ações da esquerda democrática (esqueçam o papo de ameaça de revolução armada realizada por uma esquerda marxista, isso não estava nem perto do horizonte) em comícios e greves, o golpe. Tudo nos 2 anos e meio entre agosto de 1961 e março de 1964.

Na magistral resenha que fez de outro dos livros saídos na onda dos 50 anos do golpe, Celso Barros levanta a hipótese (pouco investigada), de que a existência de chapas não casadas de presidente e vice teriam sido um fator de grande desestabilização. Ou seja, o fato de que as pessoas podiam votar no Jânio e num vice de outro partido (no caso Jango, que seria o vice do Marechal Lott). Aliás, tanto em 1955 quanto em 1960 Jango conseguiu o feito de, como vice, ter mais votos que o presidente eleito (JK na primeira vez).

Realmente Jânio Quadros contava com isso quando renunciou, esperando que houvesse um clamor para impedir a posse do vice, o que o faria voltar com amplos poderes, dissolvendo o Congresso. Setores militares realmente tentaram impedir a posse do vice, mas sem devolver a presidência a Jânio. O Congresso, por sua vez, aceitou rapidamente a renúncia do presidente, mas não aceitou que os militares controlassem o novo governo, e foi fundamental na garantia da posse do presidente constitucional.

Essa confusão toda de 1961 causou problemas sérios para a possibilidade de formar um governo estável, mas  creio que Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes demonstram que as possibilidades eram múltiplas – a crise da renúncia de Jânio não levava imediatamente ao golpe de 1964, mas havia um amplo leque de possibilidades.

O fator que provavelmente foi mais decisivo não foi a confusão do voto separado para presidente e vice, mas a meu ver, ressalta da leitura do livro o fator terrivelmente desestabilizador que foi a inexistência de um candidato natural à sucessão de João Goulart em seu próprio partido. Neste caso, o impedimento da reeleição foi um fator negativo, pois Jango não poderia concorrer a um próximo mandato (embora estivesse manobrando para alterar esta legislação e isso fosse percebido como golpismo). Foi mais negativo o fato de que o principal líder da esquerda democrática – Leonel Brizola, não podia se candidatar por ser casado com a irmã de João Goulart. Por este fator, o ex-governador do Rio Grande do Sul, líder da rede da legalidade e  deputado proporcionalmente mais votado da história mas eleições de 62 (só que pelo Rio de Janeiro) – simplesmente não podia ser candidato, e acabou sendo um dos atores mais radicais, pressionando sempre contra uma composição de forças com os setores políticos moderados. Foi em grande parte o radicalismo de Brizola que dinamitou a aliança do PTB com o PSD (o que equivaleria nos dias de hoje ao PT tentar governar sem o PMDB – nossa política não mudou muito desde aquela época, só trocaram as letrinhas das siglas partidárias).

Além do radicalismo de Brizola, outros potenciais candidatos à sucessão de Jango também pagaram pra ver o “quanto pior melhor”: Ademar de Barros, governador de São Paulo – estado cujo empresariado foi decisivo no apoio ao golpe e depois ao Regime Militar; Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, que já tinha planejado um golpe para o qual teria o apoio militar dos EUA, com a operação Brother Sam; Carlos Lacerda, o histérico governador da Guanabara (e publisher do jornal Tribuna da Imprensa) – que tinha o apelido de “demolidor de presidentes”.

Compondo o quadro dos radicalismos inconsequentes à direita a à esquerda, havia também o líder das ligas camponesas Francisco Julião, eleito deputado federal, e que articulou apoio financeiro e armamentos vindos de Cuba para preparar uma guerrilha, mas cuja trama foi desarticulada pela polícia brasileira e descoberta pela CIA por um erro diplomático de Jango (o presidente fez a gentileza de devolver as armas a Fidel, e o avião foi descoberto quando teve problemas mecânicos na Bolívia).

O mais inconsequente politicamente foi mesmo o Jango. O próprio presidente não apoiava os vários gabinetes que formou no período parlamentarista, já interessado em passar o presidencialismo via plebiscito. Também jogou com o apoio das massas, afinal este tinha sido seu grande trunfo político dos tempos em que foi Ministro do Trabalho no último governo Vargas e vice-presidente de JK.

Mas como presidente esta estratégia tinha poucas possibilidades de dar bom resultado. Os autores mostram como a opção de anistiar sargentos e marinheiros revoltosos, atender sindicalistas e grevistas, fazer reforma agrária por decreto (quando ela vinha sendo discutida no congresso com apoio de todos os setores políticos) e discursar pessoalmente num mega comício no Rio de Janeiro – tudo isso somou para uma mudança radical de percepção política. De presidente constitucional cujo mandato devia ser defendido pelas forças democráticas em 1961, Jango rapidamente converteu-se numa ameaça, num presidente interessado em minar as instituições para perpetuar-se no poder com apoio dos setores radicais do PTB (e também com a ala moderada dos comunistas, que ficaram com PCB – o chamado “partidão”, de Luis Carlos Prestes).

Não custa enfatizar novamente: não existia uma ameaça de golpe comunista que pudesse preocupar os vários setores da sociedade que começaram a apoiar a derrubada do presidente. O medo era mesmo de que o presidente se apoiasse em forças como os sindicatos, os sargentos, líderes como Brizola, Arraes e Julião, e com isso se perpetuasse no poder realizando as prometidas reformas de base sem composição política com os setores conservadores.

A grande ilusão era a possibilidade de um rápido golpe preventivo, tanto que candidatos às eleições de 1965 foram favoráveis ao golpe na primeira hora (JK, Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto). Que os militares iriam implantar já nos primeiros dias uma violência desmedida contra as esquerdas, e que iam alijar os principais líderes de todos os matizes políticos – inclusive os pré-candidatos mencionados acima – para ficar no poder por 21 anos era uma coisa que realmente ninguém previa.

Além da detalhada descrição histórica e das excelentes avaliações que este livro nos traz, ele acaba nos levando a uma grande lição, que fica gritando nas páginas que nos descortinam este mundo do turbulento governo Jango.

Com a democracia não se brinca. Se ela não for cuidadosamente mantida em equilíbrio, as consequências são terrivelmente nefastas para todos.

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