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A renúncia do Papa: uma perspectiva histórica
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A decisão de Ratzinger de renunciar ao trono de São Pedro é inédita. O pouco que li das notícias sobre o acontecido informa que a renúncia é uma coisa rara, porque a última aconteceu há 600 anos. Mas era um contexto muito diferente, e as transformações ocorridas no papado neste meio tempo não foram irrisórias. Vale a pena pensar a diferença entre os dois casos, para ter a medida da importância histórica deste acontecimento.

REUTERS/Stefano Rellandini
Papa vai celebrar a missa da Quarta-Feira de Cinzas na Basílica de São Pedro, em vez de numa igreja menor de Roma

O último papa a renunciar foi Gregório XII, em 1416. Mas a situação era muito outra.

A renúncia de então não foi por motivo de saúde, nem algo próximo disso. Foi uma decisão política, necessária para acabar com os mais de 100 anos de duração do chamado Cisma do Ocidente, também apelidado de “cativeiro babilônico da Igreja”, em referência ao episódio da história de Israel narrado no Antigo Testamento.

Desde o início do século XIV o papado viveu o constrangimento de ficar sob a interferência direta da monarquia francesa, que aprisionou o papa e forçou a transferência da corte papal para a cidade francesa de Avignon.

O historiador Paul Johnson enquadra este episódio no que considerou como um movimento político de oposição às pretensões do papado de exercer um poder totalizante na política européia. O auge do poder papal ocorreu sob o pontificado de Inocêncio III (1198-1216), que logrou subjugar as grandes monarquias aos interesses “espirituais” de Roma.

Ao mesmo tempo em que deu a maior demonstração de força da Igreja Romana em toda a história, Inocêncio III atraiu sobre o papado uma notável rivalidade geopolítica. Passou a fazer parte dos interesses de todos os monarcas seculares contrapor-se ao domínio do Bispo de Roma como prerrogativa para aumentar o próprio poder.

Em conseqüência, quase 100 anos depois do pontificado de Inocêncio III, a igreja via seu chefe maior submeter-se aos interesses do Rei da França.

Durante praticamente todo o século XIV, conviveu-se com dois papas, e somente a posteriori é que se pode considerar que os papas que tiveram sua corte em Avignon não fossem legítimos. A situação não deixava de ser confortável, afinal, mais ou menos como os presidentes brasileiros que gostaram de ir para Brasília para ficarem imunes às passeatas do Rio de Janeiro, da mesma forma o papado em Avignon era uma ótima maneira de escapar da influência perigosa da “turba de Roma”, que influiu não poucas vezes nos rumos da política eclesiástica.

Afinal, desde o pontificado de Gregório Magno (590-604) o papado funcionou como liderança européia da Igreja e liderança política “normal” na região de Roma, incluindo a administração pública, as finanças e até os exércitos. A partir de então, o papado passou a funcionar como mais uma das muitas monarquias européias, com o diferencial de que tinha influência sobre as paróquias de todo o continente, situação para a qual a disciplina litúrgica construída por Gregório I foi fundamental.

Voltando ao caso da renúncia de Gregório XII.

Quando renunciou, em 1416, o papa que hoje é reconhecido como o único papa verdadeiro de então era na verdade apenas um entre 3 papas existentes. O de Avignon, posteriormente considerado como anti-papa, e mais um nomeado no Concílio de Pisa (1409) – aproveitando-se da ausência dos dois papas concorrentes no concílio que pretendia resolver a divergência.

Somente no Concílio de Constança (1416), a divisão foi resolvida definitivamente, e a renúncia de Gregório XII teve papel fundamental para unificar o papado. O esforço pela unificação daria mais um último século de relativa estabilidade ao papado como liderança eclesiástica e política na Europa.

A influência do Bispo de Roma seria definitavamente rompida nos processos políticos que costumam ser chamados de “Reforma Protestante”, ocorridos 100 anos depois do Concílio de Constança. Ao longo do século XVI saíram da influência do papado vastos territórios da Alemanha e Escandinávia (que se tornaram estados luteranos), Inglaterra (Anglicana e/ou calvinista), Holanda, partes da Suíça (Igrejas Reformadas).

Mas há uma grande semelhança entre a importância histórica e estratégica das renúncias de Gregório XII e Bento XVI.

Naquele momento, uma renúncia para pacificar um papado dividido, e recuperar a autoridade da Igreja que tinha sido abalada pela subserviência ao Rei da França.

Nos dias de hoje, uma simples renúncia por motivo de saúde – fator completamente inédito, que revoluciona o direito canônico (disciplina mais antiga do conhecimento ocidental) e abre portas para mudanças na instituição mais tradicional e mais avessa à mudanças do mundo de hoje.

A Igreja de Roma anda às voltas com inúmeras dificuldades, e significativa perda de influência. A atitude de Ratzinger é de uma coragem inédita pois, assim como a de Gregório XII 600 anos antes, pode abrir caminho para mudanças pontuais mas significativas na forma como o papado exerce sua liderança.

Isso será fundamental para garantir mais alguns anos de estabilidade a uma instituição que funda sua autoridade numa tradição milenar e que vive em permanente conflito com o mundo contemporâneo.

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