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Umberto Eco, O cemitério de Praga (capa da edição da Record)
Umberto Eco, O cemitério de Praga (capa da edição da Record)| Foto:
Umberto Eco, O cemitério de Praga (capa da edição da Record)

Umberto Eco, O cemitério de Praga (capa da edição da Record)

Acho que existem dois possíveis enfoques para pensar uma relação entre história e literatura. Uma delas, talvez a mais óbvia e que vem sendo praticada por muitos historiadores, é ler literatura de ficção como testemunho de uma época. É por exemplo o Piketty dizendo que Jane Austen é melhor que Marx para entender questões de patrimônio e rendimento do capital no fim do século XVIII. Ou é o Sidney Chalhoub falando de um Machado de Assis historiador.

Outro enfoque possível, e esse é mais difícil de fazer, é o que o Umberto Eco faz em muitos dos seus romances (não digo todos porque não os li). Dizem que Jacques LeGoff, o grande historiador do medievo, afirmou que O nome da rosa era o melhor livro de história que ele conhecia. Sim, um romance de Umberto Eco, ambientado num mosteiro no fim da Idade Média, com discussões teológicas e filosóficas da época (que o sábio italiano conhece como poucos). Ali ele imaginou personagens fictícios para reconstruir um mundo histórico. Afinal, não é todo dia que um historiador consegue documentação para reconstituir a vida e as ideias de um Menocchio.

Então, O cemitério de Praga é exatamente isso. Ótima literatura, mas na verdade um livro de história. Já contando o fim do livro (não, não é spoiler): tem ali um aviso de que todos os personagens, exceto o Sr. Simonini protagonista fictício, são personagens históricos reais.

Ou seja, o livro é praticamente uma história da espionagem política e da prática disseminada de forjar documentos falsos para incriminar judeus e maçons e tentar defender o casto mundo dominado por “igreja e rei”, que estava ruindo de maneira inevitável.

Umberto Eco inventa um personagem que nasceu e viveu a juventude em Turim, filho de um carbonário mas neto de um senhor de terras. Mortos, primeiro o pai depois o avô, Simonini se vê obrigado a ganhar a vida, e o fará trabalhando no tabelionato que forjou os documentos que efetivaram a ruína de seu avô e o fim de sua herança. Torna-se então um exímio falsário, que prestará serviços para a polícia local, embarcando numa aventura como espião entre as tropas de Garibaldi que fizeram anexar todo o sul da penísula ao reino do Piemonte, criando a Itália moderna.

O que se vê ali não é uma história de heroísmo militar, mas de vitórias compradas com apoio financeiro de gente que prefere ver um reino do Piemonte unificando a Itália do que correr o risco de uma revolução engendrar uma República italiana. Uma batalha de espiões, falsários, traições e subornos.

Comprometido por sua ação na campanha dos vermelhos de Garibaldi, Simonini acaba tendo que se transferir para a capital francesa. Em Paris Simonini monta um tabelionato bem sucedido e presta serviços à polícia de Napoleão III. Convive com a Comuna de Paris e forja os documentos que resultarão na condenação do Marechal Dreyfuss.

Mas sua grande obra prima, trabalho de uma vida, é a cena dos rabinos reunidos no Cemitério de Praga, em um ritual macabro. Com adaptações e histórias coletadas ao longo de toda sua experiência como falsário, o documento termina por ser um dos mais influentes da história política moderna. (Deixo para o leitor descobrir do que se trata lendo o livro).

Então, está aí uma grande dica. Quer ter uma visão panorâmica da história política do século XIX, e não terá paciência para ler livros de história? (Recomendo neste caso A era das revoluções, A era do capital e A era dos impérios, trilogia inescapável de Eric Hobsbawm) Então fique com um romance de ficção, classificável como “histórias de espionagem”. Fique com O cemitério de Praga.

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