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Entrevista – Nicole DiSante: A Garota do Veículo Fantástico
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Nicole DiSante/Acervo Pessoal
Durante sua passagem por Curitiba, Nicole desceu a Serra do Mar em uma bike com freio no pedal: “Fiz minhas loucuras”.

Quando conseguiu uma bolsa paga pelo Departamento de Estado americano para estudar um assunto de seu interesse, em qualquer país, a estudante norte-americana Nicole DiSante não teve dúvidas e escolheu Curitiba. O objetivo era conhecer de perto aquela fria cidade do sul do Brasil, sobre a qual tanto lera durante o curso de Geografia Humana na Universidade do Arizona.

“Estava interessada em planejamento urbano e em tecnologias sustentáveis, o que me levou a ler muito sobre a cidade. Fiquei curiosa para ver por mim mesma se Curitiba é mesmo um verdadeiro exemplo de planejamento do que todos nós esperamos ser uma cidade ecológica”, conta.

Nos dez meses em que por aqui permaneceu, Nicole estudou, fez amigos, e conheceu o lado bom e o lado ruim da cidade. “Acabei escolhendo o tema da bicicleta porque estava montando uma para poder me locomover e senti a frustração da situação”, relata.

O resultado dessa experiência se transformou no documentário “O Veículo Fantástico”, um olhar preciso e precioso da estudante sobre a realidade política e social da bicicleta na capital paranaense.

O vídeo foi exibido nos dias 13 e 14 de setembro, na Cinemateca, como parte da programação do Mês da Bicicleta em Curitiba.

Para ver o vídeo pela internet, clique aqui.

Antes da estreia oficial, Nicole, que já voltou para os EUA, falou com exclusividade ao blog Ir e Vir de Bike sobre o documentário e as impressões que levou de suas pedaladas por Curitiba. Confira a entrevista:

Primeiramente, conte onde você mora, qual sua idade e formação?

Eu nasci em 1985, tenho 26 anos e cresci em Tucson, Arizona. Fui para a Universidade do Arizona, onde me formei em Geografia Urbana e Artes Visuais.

Qual a sua relação com a bicicleta?

Cresci andando de bicicleta. Ao menos sempre que tinha a sorte de viver perto da minha escola e dos meus amigos. Hoje em dia, em Tucson, eu geralmente ando de bicicleta. A cidade fica em um vale deserto e o clima seco e a geografia plana são favoráveis a prática do ciclismo.

Em termos urbanísticos, Tucson oferece uma boa infraestrutura para quem pedala?

Uma coisa positiva aqui é a 3rd Street Bike Path, rua secundária exclusivamente dedicadas aos ciclistas que atravessa toda a cidade, ligando a universidade ao centro. Carros não são permitidos e a preferência é sempre dos ciclistas. Mesmo com esse espaço, ainda há muitos carros que invadem a área e provocam acidentes, inclusive com morte de ciclistas. Mais pessoas poderiam usar suas bicicletas para se locomover. As coisas estão separadas e as pessoas ainda são muito dependentes de seus carros.

Como surgiu a ideia de fazer o vídeo-documentário “O Veículo Fantástico” em Curitiba?

Posso dizer que foram cinco motivos: 1) Para entender melhor a situação da política urbana em Curitiba; 2) Para inspirar as pessoas sobre a alegria de se andar de bicicleta; 3) Para permitir que os próprios curitibanos contem suas histórias, sobre porque eles pedalam e também digam as mudanças que eles querem ver em sua cidade; 4) Para mostrar o poder por trás da ação da comunidade já que, mesmo que os políticos não ouçam os cidadãos para fazer mudanças positivas, a comunidade consegue fazer, por si mesma, essas mudanças; e, 5) Para completar minha pesquisa com um filme de qualidade, que poderia ser usado como uma ferramenta para explicar toda essa situação, esperando, com isso, ajudar o movimento cicloativista.

Nicole DiSante/Acervo Pessoal
Nicole: “A bicicleta nos dá a liberdade para escolher novos caminhos”.

Então acredita que seu filme pode ajudar a conscientizar mais curitibanos a adotarem a bicicleta nos seus descolamentos do dia a dia?

Como ciclista, eu costumava me perguntar “por que todos não andam de bicicleta”? Mas, ao fazer este filme, uma das coisas que eu aprendi foi que não é realista assumir que todo mundo vai de bicicleta. A pessoa precisa ter certa característica, com uma disposição específica para lidar com os inconvenientes de bicicleta e para atingir o seu potencial para o prazer de pedalar. Mesmo que andar de bicicleta seja bom para todos, Curitiba me mostrou o aspecto cultural de automóveis versus bicicleta. Isso é algo complicado e profundamente enraizado na educação de pessoas, ambientes sociais, de classe, entre outras coisas. Eu não acho que o meu documentário vai mudar isso em uma pessoa. Minha esperança é que ele provoque as pessoas para fazer perguntas e que o filme possa ser usado pela comunidade de ciclistas curitibanos para ajudar seu movimento.

Como foi sua experiência de pedalar pelas ruas de Curitiba?

Uma das primeiras coisas que fiz em Curitiba foi providenciar uma bicicleta. Eu não pensei muito sobre isso no início. As pessoas com as quais eu convivia diziam que eu estava louca de sair sozinha de bicicleta por aí. Admito que fiz algumas coisas muito perigosas, como descer a Serra do Mar com uma bicicleta com freio no pedal, pedalava durante a noite com as luzes apagadas, nunca usei um capacete e usava as canaletas. Eu já estava acostumada a ter uma bicicleta e sem uma eu me sentia impotente, imóvel.

O que é preciso para que a cidade passe a ter políticas voltadas ao uso da bicicleta?

Na verdade é preciso que os planejadores da cidade utilizem a bicicleta. Este é um dilema clássico. As pessoas que planejam uma ciclovia sem serem ciclistas não entendem as necessidades reais de quem a usa. Mas também existem outros fatores que vão além do aspecto político.

Como assim?

O clima, por exemplo. O tempo em Curitiba é frio e chuvoso. A cidade tem algumas subidas que tornam os descolamentos difíceis. Ainda assim, é preciso lembrar que nos países escandinavos o frio é muito maior e, mesmo assim, há muitos ciclistas.

Existe também o fator cultural…

Sim. Os carros ainda são vistos como um símbolo de status e ciclismo é visto como coisa das classes mais baixas. As pessoas querem conforto, o que não deixa de ser uma necessidade humana. Transporte público e ciclovias, porém, podem estimular que mais pessoas deixem seus carros na garagem de casa. Por outro lado, é preciso promover o uso da bicicleta desde a infância. Se acharmos que ela é legal e boa para nós, estaremos mais propensos a usá-la quando estivermos mais velhos. Mas também precisamos tornar as ruas seguras para nossas crianças, pois como é agora, os pais sequer deixam as crianças andarem sozinhas da porta para fora.

Nicole DiSante/Acervo Pessoal
Nicole, em Tucson, no Arizona, com seu triciclo: “Aprendi que a bicicleta é importante porque nos conecta com nosso ambiente e nossa cidade”.

O que você aprendeu fazendo o documentário?

Fazendo o projeto e conversando com meus amigos de bicicleta em Curitiba, formei razões adicionais para pedalar. Aprendi que a bicicleta é importante porque nos conecta com nosso ambiente e nossa cidade. Ela edifica a comunidade porque você começa a interagir com as pessoas que vê andando de bicicleta ou a pé ao seu lado. Você começa a ver quando as flores brotam, as folhas caem e tem a sensação da mudança das estações ao seu redor. A bicicleta nos faz ser parte da cidade, ao invés de apenas passar por ela “protegidos” em um veículo. Ela nos dá a liberdade para escolher novos caminhos, dependendo do dia e, por último, nos coloca diariamente diante da nossa própria fragilidade de que somos seres mortais.

Por falar nisso, recentemente dois ciclistas morreram atropelados nas ruas de Curitiba, em um mesmo dia. O que acha que deveria ser feito para tornar o trânsito da cidade mais civilizado e menos violento?

Esta é uma tragédia de carros. Eles nos trouxeram conforto, benefícios, poluição e ruído. Mas o índice de mortes no trânsito cresce exponencialmente desde que o primeiro carro foi inventado. E a cada ano, ficamos mais insensíveis ao que está ocorrendo. Algumas sugestões ajudariam nesse sentido.

Poderia citar alguns exemplos?

Ciclovias amplas dedicadas exclusivamente aos ciclistas; campanhas de segurança pública agressivas, que exijam que motoristas sejam conscientes e respeitem a vida dos ciclistas; sinalização adequada nas vias; educação nas auto-escolas sobre a importância de se dar preferência à vida – de ciclistas e pedestres; fazer cumprir a lei, com responsabilização criminal e multas elevadas para quem atropelar um pedestre ou um ciclista e criação de novas leis, que defendam os direitos dos ciclistas e apliquem esses direitos. Por outro lado, os ciclistas devem ser cautelosos: usar sempre o capacete e luzes e respeitar as regras de trânsito.

Quais as lições que tirou de sua passagem por Curitiba?

Viver em Curitiba foi uma experiência maravilhosa. Para mim, tratava-se de conhecer outra cultura, a compreensão de como as cidades são construídas. Estou profundamente inspirada depois de passar tempo com os cidadãos de Curitiba e líderes visionários da comunidade que trabalham para mudar a sua comunidade através da compaixão e da arte. As pessoas estão fazendo grandes coisas, como o Mês da Bicicleta, a Bicicletaria Cultural, a iniciativa do VotoLivre.org entre outros. Sinto-me honrada por ter assistido uma parte da história e de documentar esses fatos. Estou ansiosa para voltar um dia para ver o que de fato aconteceu. A consciência social muda a cada geração e, pouco a pouco, podemos fazer ciclovias acontecer. Mesmo se tivermos que pintá-los nós mesmos.

Oito passos para uma Curitiba mais humana

A documentarista e ciclista Nicole DiSante listou as características de Curitiba que mais lhe chamaram a atenção durante suas pedaladas e deu algumas sugestões para melhorar a cidade, mas fez uma ressalva: “Não quero que pareça que estou tentando ‘consertar’ Curitiba. Os cicloativistas daí já estão cientes destas coisas e estão trabalhando nisso do seu próprio jeito”. Segundo ela, essas sugestões podem ser aplicadas a quase todas as cidades do planeta. De qualquer forma, as coisas que mais lhe chamaram a atenção em Curitiba foram:

1) A impossibilidade de se atravessar uma rua importante. Pedalar em um trajeto é agradável e fácil, até se chegar a um cruzamento. Não há um sinaleiro para o ciclista e de uma hora para outra os carros vêm em sua direção, acelerando contra você. Isso faz com que você tenha que esperar um longo tempo e corra perigosamente contra o tráfego para poder atravessar. Isso não é apenas da perspectiva do ciclista. A solução é instalar sinaleiros que parem o trânsito para ciclistas e pedestres poderem atravessar cruzamentos movimentados em segurança.

2) As “fechadas”. Embora os pedestres e ciclistas tenham preferencialmente o direito de passagem, isso nunca acontece. A condução agressiva dos motoristas acaba gerando uma pedalada estressante. Ao invés das pessoas nos carros cederem o espaço e cuidarem do ciclista, quem está na bicicleta tem que lidar com a ameaça constante de pessoas cruzando na frente e dirigindo muito perto. A solução é incentivar a educação das auto-escolas. Motoristas não são ensinados a serem gentis com pedestres e ciclistas e acho que isso tem que mudar em um nível pedagógico.

3) Insegurança. A ameaça de ser assaltado ou atacado é um dos maiores problemas enfrentados por um ciclista. Se houvesse ciclovias iluminadas, as pessoas ficariam um pouco mais seguras. Mas esse é um grande problema, que não pode ser apenas tratado por luzes e policiamento. Quanto mais as pessoas ficarem fechadas em casa, mas desertas ficam as ruas e, quanto mais vazias se tornam, mais perigosas. Mas, se mais pessoas usarem e conhecerem suas ruas, a comunidade torna-se saudável novamente.

4) Falta de estacionamentos para bicicletas. É realmente difícil encontrar um lugar para estacionar sua bicicleta em Curitiba, mas acho que a conscientização sobre a questão está aumentando. Sei que o Núcleo de Pesquisa de Transporte da UFPR está trabalhando em um bom modelo de paraciclos. O aspecto positivo é que, pelo menos, você não é multado se prender sua bicicleta em uma cerca, como aconteceu comigo aqui no Arizona.

5) Ciclovias compartilhadas. É frustrante tentar pedalar atrás de um grupo de pedestres. Eles também merecem uma área onde eles possam andar em paz, sem se preocupar com um ciclista frustrado disposto a explodi-los. É perigoso e cria tensão para ambas as partes.

6) Canaletas. Particularmente, eu gostava de andar nas canaletas. É um caminho bom e tranqüilo, até que o ônibus vem de trás de você como um “verme gigante vingativo”. O número de ciclistas usando as canaletas é um sinal claro de que os ciclistas precisam de seu próprio espaço. Eles não podem ir na calçada, não são bem-vindos nas ruas, então eles preferem andar nas canaletas, uma “ciclovia gigante” que também funciona como uma pista perigosa para um ônibus gigante. Você acha que os motoristas de ônibus poderia aprender a compartilhar este espaço?

7) Parques. Mesmo que as ciclovias não o ajudem a ir e voltar do trabalho de bicicleta, pelo menos os curitibanos têm uma ligação entre os belos parques da cidade. Tenho que dizer que andar por esses caminhos de bicicleta, simplesmente por lazer, é uma coisa muito agradável de fazer. Os parques são muito bonitos e a maioria das cidades no mundo não tem sequer ciclovias e muito menos parques. Isso é algo especial.

8) Falta de manutenção nas ciclovias. Os buracos e a falta de guias rebaixadas fazem do passeia algo desagradável, além de exigir maior manutenção de rodas, aros e pneus. É óbvio que a cidade tem outras prioridades, mas o estado das ciclovias não mentem sobre a falta de conservação e isso é mais importante do que se imagina. Se as ciclovias não são mantidas, elas se tornam espaços obsoletos. Este seria um bom projeto para grupos comunitários, que poderiam se reunir para tapar buracos e fazer rampas ao invés de esperar a prefeitura fazê-lo.

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