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Com direito a dois meses de descanso por ano, juízes federais que acumulam férias por “necessidade do serviço” recebem indenização de até 60 dias por ano, algumas vezes por até três anos seguidos. Também é pago o adicional de um terço do salário – fixado em R$ 28,9 mil. A indenização pelos 60 dias fica em R$ 77 mil. Como se trata de indenização, o magistrado não paga Imposto de Renda nem contribuição previdenciária sobre esse valor, que também não conta para o cálculo do teto constitucional.

Levantamento feito pela Gazeta do Povo a partir de dados oficiais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, revela que foram indenizados 492 períodos de férias de 141 magistrados – quase um quarto dos quadros daquela região – entre 2009 e 2015, totalizando 13.118 dias. Considerando o salário atual, essa despesa ficaria em R$ 16,8 milhões. Os demais tribunais federais e estaduais questionados pela reportagem não responderam ao pedido de informação.

A acumulação de férias por necessidade de serviço está regulamentada na Resolução 130/2010 do Conselho da Justiça Federal (CJF), a quem compete propor a fixação de vencimentos e vantagens dos juízes federais. A necessidade de serviço é caracterizada nas seguintes situações: exercício de cargo de presidente, vice-presidente, corregedor, diretor de escola de magistratura, diretor de foro, presidente de turma recursal, coordenadores dos juizados especiais e corregedores de presídios; convocação de magistrado por tribunal ou conselho e designação de magistrado para acumular mais de três acervos processuais.

O artigo 16 da Resolução 130 diz que, “em qualquer hipótese, as férias, convertidas em pecúnia ou não, são devidas com o adicional de 1/3”, como prevê a Constituição federal. O artigo 17 deixa claro que, “sobre a indenização de férias não incidirá desconto a título de Imposto de Renda Retido na fonte e de contribuição para o Plano de Seguridade Social do Servidor Público”.

Os trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos têm direito a 30 dias de férias por ano, podendo vender até 10 dias.

Três anos sem férias

Secretário-geral do CJF desde janeiro deste ano, o juiz federal Cleberson José Rocha foi indenizado por dez períodos de férias não gozadas de 2008 a 2013, num total de 225 dias, na 7ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal. Em 2010 e 2011, ele recebeu em pecúnia (dinheiro) os 60 dias de cada ano.

A desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, do TRF1, recebeu indenização por 14 períodos de férias de 2006 a 2014, totalizando 359 dias. Em 2007, 2008 e 2009, ela foi indenizada por 29 dias de cada período, tendo ficado praticamente três anos sem férias.

Integrante da 10ª Vara da Justiça Federal de Minas Gerais, Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes foi indenizado por 12 períodos de férias acumuladas de 2009 a 2015. O juiz federal Francisco Hélio Camelo Ferreira, da 1ª Vara Federal do Piauí, recebeu indenização por sete períodos, de 2010 a 2014, num total de 210 dias. Em 2010 e 2013, foram indenizados os 60 dias de cada ano.

O juiz federal Rodrigo Navarro de Oliveira, da 24ª Vara Federal do DF, teve indenizados 11 períodos de férias, sendo nove deles de 30 dias, entre 2009 e 2015. Em quatro anos, foram indenizados os 60 dias.

Associação nega venda de férias

O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso, afirma que os magistrados não vendem férias. “Não é possível vender em hipótese nenhuma. É até uma reivindicação da carreira, que pudéssemos vender dez dias, 20 dias. Nós não podemos. O que é possível é indenizar as férias não gozadas por necessidade do serviço, que é estabelecido por uma resolução do CJF”.

Veloso cita como exemplo o diretor do foro. “Qualquer exercício de chefia, por exemplo, o delegado, além do salário, tem uma função gratificada, pelo exercício da chefia da delegacia. Na Justiça, infelizmente, não tem isso. O juiz federal é diretor do foro e não recebe um centavo a mais por essa atividade. É coordenador do juizado especial, não recebe a mais. Na 1ª Região, são inúmeros casos em que o juiz responde por ele e mais dois. Como ele vai tirar férias? Fica direto, sem tirar férias. Nesse caso, pode pedir a indenização”.

O próprio Veloso foi indenizado por três períodos de férias acumuladas em 2010 e 2011. Em 2010, esteve convocado para o gabinete do desembargador Leomar Amorim. No ano seguinte, ele foi removido para a 27ª Vara Federal de Brasília. “Eu estava implantando a vara sozinho. Fui o primeiro juiz da vara. Como eu iria implantar uma vara e ao mesmo tempo tirar férias? Não tive férias”.

O presidente da Ajufe faz um pedido: “Mas eu queria que constasse que sou juiz federal há 22 anos. Nesse período, só tive um pedido de indenização de férias não gozadas (para três períodos). Se isso fosse constante, todo ano eu pedisse, todo ano me fossem indenizadas as férias, chamaria a atenção. Mas apenas uma vez durante 22 anos…”

“Não temos FGTS, horas extras”

O presidente da Ajufe também defende as férias de 60 dias, previstas na Lei Orgânica da Magistratura. “É preciso se ter uma ideia da diferença dos regimes jurídicos da magistratura, do Ministério Público, dos servidores públicos e dos trabalhadores da iniciativa privada. Tomamos, por exemplo, o FGTS. O trabalhador que trabalha numa empresa tem esse fundo de garantia. Se ele precisa comprar uma casa, ele pode usar. Os magistrados e o MP não têm. Se eu quero adquirir um imóvel, eu tenho que fazer uma economia, uma poupança. Não posso simplesmente chegar lá e sacar aquele dinheiro”.

“As férias de 60 dias estão inseridas dentro dessa situação. Por quê? Porque é o único direito que a magistratura tem diferente dos trabalhadores em geral. Nós não temos FGTS, não temos licença prêmio”, continua Veloso. Ele afirma que esse direito poderia ser discutido na categoria: “Quando falo com os colegas sobre o assunto, eles dizem: ‘Vamos fazer a troca, então! Nós entregamos os 30 dias de férias e eles nos dão o FGTS’”.

O presidente aponta ainda outra justificativa: “As férias de 60 dias são justificadas porque os juízes não têm direito a hora-extra. É outro detalhe que o trabalhador da iniciativa privada tem e nós não temos. Se existe uma grande operação, eu tenho que ficar no fórum até 10h da noite, 11h da noite. Tenho que ir ao fórum sábado, domingo, despachar um processo urgente. Não vou ser remunerado por essas horas. Uma maneira de compensar essas horas é, também, dar mais esses 30 dias de férias. Os demais servidores públicos têm direito a horas extras. Na Justiça, são 25 horas por semana”.

Juízes justificam indenizações de férias

O juiz federal Cleberson José Rocha afirma que as convocações pelo TRF1 decorrem, além da necessidade administrativa de gerir 14 unidades da federação distribuída em 80% do território nacional, do fato de que os órgãos funcionam com quórum muito reduzido e com acervos de processos atualmente em média de 25.995 processos/Juiz, muito superior à média dos TRTs (2.294/Juiz) e dos Tribunais de Justiça (2.897/Juiz). “Nessas condições, os juízes convocados estavam impossibilitados de gozar férias, sob pena de acúmulo de processos e atraso no julgamento de causas, muitas delas alimentares e urgentes.”

Rocha informou que esteve convocado no TRF1 na função de auxílio ou de substituição de desembargador federal afastado. Atuou em auxílio à desembargadora Neuza Alves em 2007, auxílio ao desembargador Leomar Amorim de 2008 a 2010 e substituição ao desembargador Amorim de 2010 a 2011 e de 2012 a 2016.

O magistrado afirma que, até 2014, “o TRF1 entendia não ser possível convocar outro juiz para cobrir férias de juiz federal convocado, o que impediria a realização das sessões de julgamento, pois as Turmas eram (e ainda são) compostas de três membros e o quórum mínimo de julgamento é em igual número. Não seria razoável permitir ao juiz convocado nessas condições gozar férias, com prejuízo da tramitação dos processos do gabinete e da realização de sessões de julgamento”.

Acrescentou que os gabinetes nos quais estava convocado tinham, aproximadamente, 20 mil processos, 33 mil processos e 39 mil processos, respectivamente. “Tinha que participar do julgamento de outros tantos processos julgados pelos outros dois gabinetes dos desembargadores que compunham a respectiva turma, proferindo voto, pedindo vista, lavrando acórdão, etc”.

Falta de estrutura

O juiz federal Rodrigo Navarro de Oliveira afirma que as situações de acumulações de períodos de férias “não ocorreriam, ou estariam restritas a um número muito reduzido de juízes, se não houvesse necessidade de convocação para exercício de funções judiciais. A falta de estrutura adequada do TRF leva a essa necessidade de convocação de juízes. É preciso que haja ampliação do tribunal ou criação de outros tribunais na área da região, possibilitando o desmembramento”.

Justificou as suas indenizações de férias: “No período de sete anos, entre 2009 e 2015, tive deferidos pedidos de conversão em pecúnia de nove períodos de férias, e de dois saldos de 20 e 5 dias de férias. Todos os deferimentos observaram as regras estabelecidas pelo CJF, que permitem essa conversão quando, por motivo de necessidade do trabalho, o magistrado não pode se afastar de suas atividades para gozar férias”.

Segundo o magistrado, os motivos que caracterizaram essa necessidade de serviço naqueles anos foram as designações para atuar como juiz auxiliar da Corregedoria do TRF1 (2014, 2015 e 2016); convocações para auxiliar ou substituir desembargadores federais no TRF1 (2009, 2010, 2012 e 2016) e convocações para participar de mutirão de julgamentos de processos no TRF1 (2011, 2012, 2013 e 2016).

Navarro informou que, nas convocações para auxílio em atividades administrativas “não há vedação a gozo de férias, mas a própria dinâmica do trabalho impede o gozo de período completo de férias”. No caso de auxílio à Corregedoria, relatou o magistrado, “o juiz auxiliar passa grande parte do tempo em correições nas 14 unidades da federação e não tem como se afastar para gozo de férias. A solução possível é gozo de períodos menores de dias de férias, como tive autorização para fazer, nos dois anos de convocação administrativa entre 2014 e 2016”.

Acrescentou que, no recesso judiciário há trabalho em regime de plantão, tanto em primeiro como em segundo grau. “Assim o juiz convocado é, via de regra, desconvocado no período do recesso judiciário. Por isso as convocações normalmente se iniciam em 7 de janeiro e se encerram em 19 de dezembro de cada ano. No último recesso judiciário (2016) estive designado para atuar em plantão em primeiro grau – assim como em dois outros anos”.

Acúmulo de demandas

Segundo o TRF1, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso “justificou sua impossibilidade de gozar as férias devido ao acúmulo de demandas geradas pela necessidade de serviço por meio da ocupação dos seguintes cargos nesse tribunal: Presidência da 8ª Turma, membro dos representantes dos magistrados no Conselho Deliberativo do Pró-Social, membro da comissão de acervo jurídico e coordenadora-geral do Núcleo de Conciliação da Justiça Federal da 1ª Região”.

Nota do tribunal acrescenta que, “durante a licença médica do desembargador federal Leomar Amorim – que coincidiu com a convocação para o Superior Tribunal de Justiça do desembargador federal Carlos Fernando Mathias – a desembargadora Maria do Carmo Cardoso era a única titular na 8ªTurma com competência para presidir aquele órgão julgador, o que a impediu de usufruir suas férias naquele período”.

“O juiz postula a indenização”

O juiz federal Miguel Ângelo de Alvarenga Lopes afirmou que, no período de 2009 a 2014, recebeu indenização de férias porque esteve convocado para auxiliar o TRF1 em gabinetes de desembargadores, como para atuar no Mutirão Judiciário em Dia. “Há previsão regulamentar para tal indenização. Quanto ao período de 2014 e 2015, estive na Direção do Foro da SJMG, quando a necessidade do serviço administrativo recomenda a não ausência e há previsão regulamentar para tal indenização. Fiquei de plantão inclusive nos períodos de recesso de final de ano, quando estava exercendo a direção do foro”.

A Justiça Federal de 1º Grau em Minas Gerais informou que as indenizações não são autoconcedidas pelos magistrados: “O juiz postula a indenização e o tribunal, se a hipótese se amoldar ao disposto na Resolução 130/2010, defere ou não, após a oitiva da Corregedoria Regional. No âmbito do TRF1, a necessidade se justifica pela existência de aproximadamente 200 cargos vagos de juízes. Em razão da vacância dos cargos, alguns magistrados acumulam acervos processuais, impossibilitando-os de usufruir as férias regulamentares, gerando direito à indenização”.

Magistrado não atuou no recesso

1ª Vara da Justiça Federal do Piauí informou que o juiz federal Francisco Hélio Camelo Ferreira, entre agosto de 2011 e setembro de 2015, desempenhou atividades jurisdicionais e administrativas especiais, caracterizadas como necessidade de serviço, que impediram o gozo integral das férias, situação que determinou a conversão em pecúnia de sete períodos.

De agosto de 2011 a junho de 2012, foi convocado para compor as turmas suplementares para julgamento dos processos do Mutirão Judiciário em Dia do TRF1. Entre junho de 2012 e maio de 2014, atuou como diretor do Foro da Seção Judiciária do Piauí. De setembro de 2013 a setembro de 2015, foi designado pra compor o Tribunal Regional Eleitoral do Piauí. “Salvo os períodos em que integrou o plantão judicial, o magistrado não atuou durante o período de recesso judicial”, diz nota da 1ª Vara.

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