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Viagens pelo Brasil com Aqueles Dois
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Fábio Alcover/Divulgação Filo
Odilon Esteves (em pé) e Marcelo Souza e Silva (à direita): Aqueles Dois fez três apresentação no Filo e continua viajando pelo país até novembro.

Confira a entrevista com Odilon Esteves e Marcelo Souza e Silva, atores da Cia. Luna Lunera, de Minas Gerais, sobre as viagens que fizeram Brasil adentro com o espetáculo Aqueles Dois.

No Festival de Curitiba, em março de 2008, conseguiram projeção. No Rio de Janeiro, fizeram dois meses de temporada com casa cheia. E pelo Palco Giratório, do Sesc, correram de norte a sul do país, conhecendo públicos diversos, desde os que nunca haviam visto uma peça de teatro, aos que não contiveram manifestações de preconceito.

Por onde vocês já passaram com o Palco Giratório?
Odilon Esteves: A primeira etapa teve três meses quase, começou dia 24 de março e foi até 16 de junho. Foram nove estados. Passamos pelo Maranhão, Rio Grande do Norte, Ceará, Bahia, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Qual foi a cidade mais desligada do teatro que encontraram?
Marcelo Souza e Silva: No Maranhão, São José do Ribamar. É uma cidade próxima a São Luis, uma comunidade rural praticamente. Foi o primeiro evento cultural que o Sesc realizou nessa cidade. A vivência daquelas pessoas era muito diferença da nossa no ambiente urbano.

Odilon: As referências da peça são muito urbanas e as deles eram rurais, de uma vida com outra estrutura. Gerou na gente um desconforto se a obra teria alguma relevância para eles.

Marcelo: Acho que a recepção foi muito boa. Ao preencherem o formulário sobre o espetáculo, algumas pessoas até disseram “não entendi muita coisa, mas eu gostei”.

Odilon: Principalmente porque é a primeira vez que o teatro ia a essa comunidade, tinha essa descoberta. A plateia era composta por 80% de crianças e adolescentes. Foi a apresentação em que a gente cortou a cena do nu e teve alguns textos mais didáticos, para tentar uma comunicação com eles. Mas tenho impressão que algumas coisas são mesmo universais: a questão da amizade, da solidão, eles reconhecem a troca de presentes, a perda da mãe, a morte.

Fábio Alcover/ Divulgação/ Filo
Rômulo Braga, ator da Cia. Luna Lunera.

Vocês perceberam alguma diferença na maneira como homens e mulheres reagem ao espetáculo?
Odilon: Normalmente, as reações femininas, pelo próprio jeito como a mulher se relaciona com a vida, tendem a ser mais abertas do que uma retração que educação masculina pede. A mulher tem uma permissão para brincadeira, enquanto universo masculino cobra um outro tipo de sobriedade. Por mais que isso já tenha sido quebrado, não tem como não dizer que é uma marca do masculino ainda. A gente teve no mailing reações masculinas expressivas. Um espectador disse: eu me identifiquei muito com a peça, eu sou o chefe da repartição, então na próxima coloquem atrizes nuas e me mandem uma cortesia.

Marcelo: A gente lida com esse universo masculino no espetáculo e fala de sentimentos que afloram mas não se expressam verbalmente.

Odilon: No Rio de Janeiro a gente teve a experiência de uma senhora mais idosa ir com as amigas. Já entraram comentando o aquecimento e as cenas de filmes, mas na hora da nudez falaram: “Aí já é demais!”, alto. E a plateia reagiu. Em uma apresentação em Vitória da Conquista, quando (os personagens) Raul e Saul são demitidos, de uma mulher da plateia escapuliu: “Bem feito”. É raro, mas a gente tem a calma de esperar que a própria plateia se reposicione em reação àquilo. No dia em que as senhoras mostraram a rejeição delas perante aquele universo, o aplauso da platéia teve um tom que eu credito em parte reativo a ela. Eram gritos de Bravo!, com um tom de “olhe como a senhora é preconceituosa”.

Marcelo: As reações nem foram tão intensas quanto eu esperava. Em algumas cidades, riam nervosos. No Rio Grande do Sul, no Paraná, uma ou outra.

Quantas vezes e por que vocês decidiram cortar a cena de nudez?
Marcelo: Em três, duas no Maranhão, porque tinha um público formado por adolescentes e crianças e naturalmente entendemos que não se justificava manter a cena, naquele momento era possível fazer esse tipo de concessão. E em Palmas, no Paraná. Quando a plateia entrou, não sei dizer, havia um lugar de acolhimento mas ao mesmo tempo de impossibilidade para fazer essa cena. Fizemos de calça. Achou que não era conveniente para aquela plateia, mais contida, mas receptiva. Foi uma decisão acertada.

Como foi essa experiência com o público do Paraná?
Marcelo: A gente tem no imaginário a ideia de que espectadores do sul são mais frios e distantes.

Odilon: Era um preconceito, a gente nunca tinha viajado para o interior do Paraná, muito menos para o interior do Rio Grande do Sul.

Marcelo: Tivemos uma experiência com o Perdoa-me por me Traíres em Porto Alegre, há uns 8 anos, e nessa ocasião tivemos uma reação um pouco mais fria. Acho que isso ficou no nosso imaginário. Mas foi muito surpreendente. Em duas cidades no máximo das 22, contando Paraná e Rio Grande do Sul, houve reação um pouco mais fria. Nos desancou nesse sentido.

Fábio Alvover/ Divulgação/ Filo
Odilon Esteves, de frente, e Cláudio Dias, de costas, em cena de Aqueles Dois, durante a apresentação no Festival Internacional de Teatro de Londrina.

Odilon: A gente foi a cidades que estavam recebendo o Palco Giratório pela primeira vez, como Palmas. Em Foz do Iguaçu, inauguramos o teatro. Numa cidade que vive do turismo e da fronteira, é muito legal o Sesc levar para quem vive ali uma outra referência. Mas é lógico que vai encontrar todas as dificuldades de uma cidade que se funda culturalmente sob essa influência. Dentro de um mesmo estado, não tem como generalizar, é de vastidão cultural impressionante. Fomos a Foz do Iguaçu, Palmas, Cascavel, Marechal Cândido Rondon, Campo Mourão, Umuarama, Paranavaí e Londrina.

Encontraram rostos sem olhos, como os do final do espetáculo, pelo Brasil?
Odilon: Acho até muito curioso quando alguém vem dizer para a gente que se viu lá na parede. Uma pessoa perguntou: “No final, nós somos aqueles?”, muito incomodada de pensar que talvez fosse. Isso cada um pode dizer por si e é uma resposta que interessa muito mais para a pessoa, o crescimento dela e a relação dela com a vida. Fico muito curioso de pensar o que seja uma pessoa sem íris nem pupila, como o Saul desenhava. Porque é o tipo de coisa que a gente pressente e a imagem é muito forte.

Nos lugares por onde passaram, quais as condições de instalação que encontraram?
Marcelo: Em São Luis (MA), a gente encontrou três situações muito interessantes. O Teatro Arthur Azevedo, para umas 700 pessoas. Em seguida o Boi da Matinha, em São José do Ribamar, que era um galpão de ensaio de bumba meu boi muito precário para apresentação teatral. E depois uma quadra esportiva de um colégio particular, em Paço do Lumiar. Isso já nos deu um pouco a dimensão dessa diversidade que seria o Palco Giratório.

Odilon: Às vezes, a gente chega a 70% do espetáculo e tem que ter humildade, alguns não tem e voltam para o hotel chorando. E mesmo assim o retorno da plateia foi muito bom. Foi uma grande lição do Palco Giratório entender que se não fosse ali, o espetáculo não estaria chegando naquela cidade. A gente fez tudo o que podia para melhorar as condições, no dia anterior fui avaliar as caixas de som de um parque de diversões ao lado para pedir que abaixassem as caixas de som na hora do espetáculo, em troca de divulgar o parque no fim.

Vocês sentiram que mexiam com a autoestima do público no interior?
Odilon: As reações de nudez, por exemplo. Quando um na plateia é muito efusivo, você percebe em alguns espectadores a preocupação: “que vergonha da nossa cidade”. Nos bate papos, em Gravataí e São Luis, pediram desculpas pela reação: “a gente não tem tanto acesso, as pessoas não estão acostumadas”. Tentamos quebrar esse mito, dizendo que mesmo nos grandes centros, que têm público mais letrado em teatro, isso acontece. Uma espectadora escreveu que tinha gostado da peça mas achado confusa, só foi entender no meio que eram Raul e Saul, mas que isso não era uma crítica, era burrice dela mesmo. Respondi pessoalmente que não era um erro, essa era a estrutura da peça e ela tinha entendido no tempo certo.

Marcelo: Em muitas cidades por onde a gente passou, às vezes o Palco Giratório era um dos únicos eventos culturais. As pessoas criam uma expectativa muito grande, vão ansiosas querendo que gostássemos da cidade. Esse tipo de reação é uma decepção para elas.

Odilon: Querem que os grupos voltem. Como a gente em BH, recentemente o grupo Autônomo foi para lá com Nu de Mim Mesmo. É um trabalho que eu adoro, e quando o produtor local me ligou dizendo que nos dois primeiros dias havia sete pessoas na plateia, fiquei penalizado.

Nos bate papos feitos depois da apresentação, quais são os temas mais debatidos?
Odilon: A questão da solidão sempre surgiu nos debates.
Marcelo: A amizade. E em algumas cidades, veio em pauta o direcionamento que você dá à sua vida. A gente não esperava por isso. Também a cena da nudez.

Diego Pisante/Divulgação
Odilon Esteves e Rômulo Braga, em momento de proximidade dos amigos Raul e Saul.

E a homossexualidade?
Marcelo: A homossexualidade surgia, mas muitas vezes o público transcende essa questão e fala de coisas para além disso.

Odilon: Nesse caminho todo, as pessoas têm aceitado essas possibilidade de o Raul e o Saul serem gays ou os dois serem heteros ou um gay e outro hetero. Elas se reconhecem, entendem que o amor entre os dois é igual ao dos heteros. “Então esse amor é igual ao meu? As questões são tão parecidas? Eles também sofrem com a perda da mãe, solidão, têm rotina de trabalho muitas vezes medíocre, assim como eu, independente da orientação sexual?” Assim como casais gays disseram que Raul e Saul são heteros, pois se fossem gays já teriam ficado no primeiro café. Mas esse é um dos jeitos de viver a homossexualidade.

Marcelo: No Rio Grande do Sul, uma plateia adolescente teve uma reação um pouco preconceituosa até. Mas essas pessoas não se manifestam para a gente.

Odilon: Em dois meses de temporada no Rio de Janeiro, fizemos 40 apresentações de quarta a domingo com a casa lotada. Isso dá uma experiência de dias em que a plateia riu de absolutamente tudo, como jamais riram depois, e outro em que não riram de nada do início ao fim, foi um silêncio sepulcral. No primeiro, o aplauso durou um minuto, a energia de expressão foi se diluindo ao longo. No outro, aplaudiram por cinco minutos com muita energia, contiveram e explodiram. Essa é uma possibilidade de leitura. Queria me debruçar e entender isso. Entram as condições do teatro, de acústica, inclinação, calor, conforto. A gente pode mexer nas nossas variáveis em função do que percebe das variáveis do público do dia. Quando a plateia está desesperada para rir de tudo, a gente segura, senão vira um Sai de Baixo. A gente não pode se contagiar, senão a plateia leva.

As reações do público ainda são imprevisíveis para vocês?
Odilon: A gente começa a mapear algumas formas de reação. Tem ações nossas que são reações à plateia. Recentemente, uma reação surpreendente me gerou outra reação em um tamanho que nunca tinha acontecido no espetáculo, (os outros atores) brincaram que eu estava quase brigando com a plateia. É uma cena em que se diz que Raul e Saul dormiram no mesmo quarto, mas cada um em um local, e no dia seguinte chegaram de cabelos molhados à repartição. “Ah, cabelos molhados? Quaquaquá (imita a plateia)!” Eu logo digo: Por isso (enfatizando a reação do público), nesse dia as mulheres não conversaram com ele. O recado era: se alertem, a reação foi desse jeito. Isso jamais teria nascido em uma sala de ensaio. Acho que é um diálogo saudável. Quando a plateia não compartilha desse preconceito a reação é completamente outra e me gera uma reação diferente. Vamos criando uma paleta de reações possíveis e vez ou outra nos surpreendemos e agregamos uma nova reação imprevista.

Fábio Alcover/ Divulgação/ Filo
O conto de Caio Fernando Abreu foi adaptado pela companhia, com a direção dos quatro atores mais Zé Walter Albinati.

Qual foi a consequência da passagem pelo Festival de Curitiba para a carreira da peça?
Odilon: Tínhamos feito duas temporadas em BH, mas Curitiba projetou o espetáculo. Não tem jeito, é a opinião que as pessoas têm sobre o espetáculo que garante a carreira dele, aopinião dos jornalistas, da classe artística e do público. Em Curitiba ganhou outra dimensão. A gente está vivendo uma experiência em que (há divergências, é claro) a receptividade do espetáculo por esses três pilares tem garantido a ele uma vida que era imprevisível.

Em 2011, vocês completam dez anos de companhia. O que planejam para a comemoração?
Marcelo: A gente está até novembro por conta de Aqueles Dois. E temos tentando entender como fazer essa comemoração, quais espetáculos trazer de volta, os que fizeram sucesso ou os que têm algum tipo de contribuição enquanto linguagem e fundamentação dos pilares do grupo?

Odilon: Os encontros que a gente tem tido ao longo do Palco Giratório foram só para trabalhar na versão em espanhol do texto. Talvez a gente vá ao México, o grupo de discussão Teatropeia nos chamou para um festival, mas estamos negociando passagens, porque eles não têm recursos.

Durante o Palco Giratório, vocês deram oficinas em todas as cidades? Quem era o público?
Odilon:
Em quase todas. Foram oficinas para iniciados e iniciantes. No Palco Giratório você encontra o Brasil real. Não tem as condições ideias do circuito de festivais de editais públicos. Em BH, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, fizemos o espetáculo para 100 pessoas. No interior do Brasil, a gente tem que se adaptar. É caro viajar e há muitas pessoas querendo ver. Ou damos 100% para 100 pessoas ou 70% para 500. E a gente não tem como justificar para as outras 400 que só 100 vão entrar. A gente tem que entender que isso é lícito.

Marcelo: Em algumas cidades, a oficina era a única possibilidade (para os artistas locais) de formação continuada no ano.

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Errata: Na edição de hoje do Caderno G impresso, a foto publicada mostra Odilon Esteves e Rômulo Braga (em vez de Marcelo Souza e Silva, como informado).

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