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Ascensão e queda de Milton Nascimento: a noite em que o Guaíra pediu desculpas
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Dizem que em Minas Gerais não acontece nada, mas o pessoal se lembra de tudo. A essa altura já deve estar correndo pela Pampulha a história da noite em que Milton Nascimento, qual um títere malconduzido, foi derrubado no palco do Teatro Guaíra, em Curitiba. Porque aqui acontece de tudo. Só que o pessoal não se lembra de nada.

O potencial do show de sábado era astronômico. Neste 2013, Bituca assopra 120 velinhas: 70 de vida, 50 de carreira. Mais que isso, havia as participações especialíssimas de Wagner Tiso – o primeiro parceiro musical de Milton – e Lô Borges, nosso arremedo de Paul McCartney. Se não era o Clube da Esquina, era um clubinho. Um aperitivo póstumo daquele que, nos anos 60, foi um dos movimentos mais sinceros, ricos e despretensiosos da música brasileira.

Talvez por isso o entrelaçar de expectativas entre os que estavam na plateia, espinafrando o gelo seco despropositado antes do início do show. O guri com um violão, rodeado de amigos; e o casal sessentão que conseguiu tornar realidade uma das maiores dicas da vida — transformar paixão em amor e amor em amizade, palavra importante para Milton Nascimento. De mãos enrugadas, uma por sobre a outra, deveriam estar contando os minutos para ouvir ao vivo o hino “Canção da América”.

Milton Nascimento rompeu no palco às 21h18, em meio ao refrão de “Bola de Meia, Bola de Gude”, cuja melodia estava, até então, a cargo do flautista e saxofonista Widor Santiago. Como Bituca, a música tem alma de moleque. Carrega consigo imagens nostálgicas — de campinhos de areia àquela sensação que um dia tivemos de que o mais importante na vida era não jogar a bola para o lado do vizinho.

Ivonaldo Alexandre/ Gazeta do Povo

Sapatos pretos, largas calças jeans igualmente pretas e um camisão cinza de mangas compridas. Milton Nascimento poderia ser confundido com um corretor de seguros não fosse o cachecol de lã colorido que envolvia seu pescoço. Isso e os óculos escuros que, com a ajuda dos cabelos inconfundíveis, parecem fazer parte de uma coisa só.

Milton tinha 14 anos quando conheceu Tiso, então com 12. O pianista era o caçula do “clube” que se costumava se encontrar nas esquinas das ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Belo Horizonte. Com água na boca, Wagner observava aqueles moleques que já tomavam uma purinha mineira. Assim que os estudos ao piano progrediam, também brincava de música com a rapaziada. “Este é um dos pedaços de mim”, disse o cantor, tão corpulento quanto fragilizado. Com Wagner Tiso ao piano, Milton cantou “Vera Cruz” — do disco Courage, de 1969.

O grau máximo da parceria histórica, naquela noite, foi estabelecido em “Caso de Amor”. Porque era voz e piano. Um amigo ao lado de outro, simplesmente. Tempos de peripécias em Minas Gerais em pleno Teatro Guaíra. “Se eu partir amanhã/ Vá levando todo sentimento/ Que pra ti guardei, juntei, somei.” Além de cotidianamente poéticas, as canções de Milton sempre carregam um tanto de tristeza e de sadia noção de finitude. De permanente nostalgia, enfim. Basta olhar para a épica e transcendental capa de Clube da Esquina 1 para ter a certeza disso.

De toda a trupe do Clube – Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Flávio Venturini, Vermelho, Tavinho Moura e Toninho Horta, entre outros agregados –, foi Milton Nascimento quem conseguiu mais sucesso em carreira solo. Talvez por isso a participação em um show do Bituca seja, mesmo hoje, uma oportunidade e tanto para seus antigos parceiros.

Foi o que se viu e ouviu quando Wagner Tiso sentou-se ao piano para tocar uma versão instrumental e áspera de “Eu Sei Que Vou te Amar”, de Jobim e Vinicius. O palco ganhou um vermelho amedrontador, e Milton sentou-se em um banquinho, ao lado do antigo camarada. A música prosseguiu por quase 8 minutos. Algumas tosses já aumentavam de volume indicando ansiedade. Segurando o microfone com as duas mãos na altura dos joelhos, Milton não mexeu um osso sequer.

Ivonaldo Alexandre/ Gazeta do Povo

Um violão foi entregue a Bituca antes da execução de “Viola Violar”, que retirou o show do pequeno e escuro buraco em que se metia. Milton ainda está desenvolto com o instrumento – excessivamente agudo, quase metálico –, mas é visível uma certa limitação também nos movimentos das mãos.
Antes de “Lilia”, faixa instrumental do disco Clube da Esquina (1972), avisou: “Essa música eu fiz para minha mãe. Ela não tem letra porque mesmo todos os versos e livros do mundo não seriam capazes de chegar aos pés daquela mulher.” Se no álbum a música soa leve e suingada, ao vivo ganhou um peso tamanho que a deixou fragmentada. Durante a execução, todos os instrumentistas tiveram seus momentos, com solos maquinados e não muito espontâneos.

Nesses momentos, Milton Nascimento se dirigia a cada um dos comparsas — Beto Lopes (guitarras), Gastão Villeroy (baixo), Lincoln Cheib (bateria), Kiko Continentino (teclados) e Widor Santiago (flauta e sax) e ficava de costas para a plateia. Mas cada movimentação no palco era uma verdadeira travessia. Milton Nascimento quase não levanta os pés para caminhar. Os arrasta em passos mínimos e essenciais, como uma gueixa que caminha cuidadosa em direção a seu homem.

Clube aberto, Lô Borges subiu ao palco para dividir os vocais e os violões de “Clube da Esquina n,° 2”. “Este é outro pedaço de mim”, disse Milton, sempre generoso. Lô Borges está tinindo, mas parecia pouco à vontade. “Resposta”, hit da também mineira Skank, foi a surpresa do repertório. A inesperada execução da música de Samuel Rosa e Nando Reis demonstra o interesse eterno de Milton Nascimento, que não se enclausurou em sua obra; e a unidade (não arrogante) da música mineira, importante para o prevalecimento de algumas bandas e artistas do estado em um cenário mais amplo, nacional.

Lô Borges teve o palco para si quando cantou “Trem Azul” e a deliciosa “Um Girassol Da Cor de Seu Cabelo” – em versão bem mais acelerada –, ambas do disco icônico do Clube da Esquina. Enquanto voltava ao palco com seus passinhos de pinguim, Milton, nostálgico incorrigível, declamou: “Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica/Mas atravessa a noite, a madrugada, o dia/ Atravessou minha vida/ Virou só sentimento.” Lá em Divinópolis, Adélia Prado deve ter dado seus pulinhos.

A essa altura, o show funcionava como uma auto-homenagem revisitada por amigos. A coisa mudou quando Milton foi Milton e cantou “Encontros e Despedidas” e “Fé Cega, Faca Amolada”, dois de seus grandes sucessos. O grande homem negro e alto de 70 anos ainda tem um timbre encantador, daqueles que faz o rapaz ao seu lado dizer “nossa!”. Mas hoje ele canta sem riscos. Controla sua voz cerebralmente, como quem opera um caixa eletrônico.

Milton sentou-se novamente e disse, bem-humorado, que o sucesso de “Canção da América” o perturbou. “É formatura, botam ‘Canção da América’. É casamento, tá lá ‘Canção da América’, é velório, botam ‘Canção da América’”. Então, propôs que a própria plateia interpretasse a música, em sua homenagem. E assim foi. As vozes femininas predominavam. Por um momento, no meio da canção, a sensação era de que Milton iria desistir da ideia. Mas fomos até o fim. Baixinho, mas fomos.

O show ganhava em grandeza. Tudo parecia nos trilhos. A banda estava à vontade – o guitarrista dedicou uma música de “seu show” para um irmão – e o repertório se aproximava do clímax. “Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor” e “Raça”, primeira faixa do álbum Milton, de 1976, criaram sintonia instantânea. “Maria, Maria”, na sequência, pôs o Guaíra de pé. Mas aí, em meio a palmas e cantoria, em meio ao ápice de uma apresentação musical, destoando de tudo e de todos, aconteceu.

Ivonaldo Alexandre/ Gazeta do Povo

Uma moça loira, toda de preto, partiu na direção de Milton Nascimento. Foi muito rápido: correndo com braços esticados como se visse um oasis no deserto, a mulher se auto-arremessou, sem dó. Um dos seguranças saiu em disparada e, tão desavisado quanto desesperado, entrou no entrevero. A banda não parou de tocar. Na plateia, se cantava “Mas é preciso ter força/É preciso ter raça”. O segurança puxou a moça, que obviamente puxou Milton. Bituca caiu em dois tempos. Primeiro estatelou-se com a bunda no chão. Logo depois, seu corpanzil pendeu para o lado e, por alguns momentos, apoiou-se em seu joelho esquerdo.

Ouviam-se “ais” na plateia. Três pessoas entraram rapidamente no palco e ajudaram Milton Nascimento. Apoiado em ombros alheios, pôs-se de pé com a presteza de um boneco de molas. Bituca se retirou e a banda concluiu a versão mais lamentável da história de “Maria, Maria.”

O absurdo é sempre uma ameaça extraordinária e constante. A moça foi jurada de morte por alguns e espinafrada por quase todos. Nem tanto porque assumiu sua condição de fã inveterada e derrubou um ídolo no palco. E sim porque derrubou Milton Nascimento.

Em 1996, o artista anunciou pela televisão que tinha diabetes. Consta que, na época, chegou a pesar 38 quilos. Quando apareceu na tevê, não tinha muito mais que isso. Outras doenças foram cogitadas, embora esclarecimentos médicos tenham confirmado que a perda de peso é uma consequência possível do diabetes descompensado. Outra é a fraqueza crônica e a dor intensa em músculos das pernas e coxas (Diabetes Mellitus com amiotrofia, diz-se). É esse, provavelmente, o quadro de Bituca.

Milton é sensível. Tem o arquétipo de um poeta. Mas é bravo. Em 1997, quando minguava por conta da doença, ressurgiu com Nascimento, álbum que venceu o prêmio Grammy no mesmo ano. Depois do susto com a fã amalucada, Bituca voltou ao palco para cantar a mágica “Travessia”. “Forte eu sou mas não tem jeito/ Hoje eu tenho que chorar/ Minha casa não é minha, e nem é meu este lugar”. Milton cantou profissionalmente, mas impávido.

Um pouco antes do fim da música, cruzou as mãos várias vezes, uma por sobre a outra, em direção à banda, informando que tudo iria acabar. E tudo acabou. Não houve boa noite, tampouco um obrigado. Pior: ficou para trás a espetacular “Cais”, prevista no repertório. Restou um sentimento de vergonha alheia. E um chiado na plateia, que ainda ressoa no Guaíra: “Desculpa, desculpa, desculpa…”

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