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Criolo sofisticou o rap para popularizá-lo
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Encontrei Criolo no elevador de um hotel de Recife durante o carnaval deste ano. Mascarado, ele apertou o 8 antes que eu clicasse no 12. Como quem não quer nada, e com a intenção de manter uma conversação rápida durante a subida, perguntei algo sobre a cidade, ou talvez o RecBeat, evento que aconteceria a partir do dia seguinte. A resposta foi fleumática e acabou com algo como “fale com a minha assessora”. Isso antes de um “boa tarde” educado.

Criolo, o alquimista, conseguiu um feito interessante: popularizou o rap ao mesmo tempo em que o sofisticou. Melodias bem definidas, uma banda inquestionável e uma afinação invejável foram responsáveis por lançar um gênero, que historicamente dialoga com celeumas de classes sociais menos favorecidas, ao quase status de música popular brasileira.

Depois de Nó na Orelha, o rapper ganhou o que restou do mainstream e abocanhou os maiores prêmios da música do Brasil, “enfrentando” tanto novas apostas da internet quanto medalhões da dita MPB.

Daniel Caron/Gazeta do Povo

Criolo foi o maior vencedor do prêmio VMB, da MTV, do ano passado. Levou nas categorias Melhor Disco (Nó na Orelha), Melhor Música (“Não Existe Amor em SP”) e Revelação. Na peleja, encarou NX Zero, Rancore, Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Marcelo D2, Banda Uó, CW7 e Emicida, rapper que é mais xiita do que seu concorrente agora pop.

Tem mais. Na 23ª edição do Prêmio da Música Brasileira, que aconteceu no último dia 13, Criolo venceu nas categorias Revelação, Melhor Cantor e Melhor Álbum (na categoria mais eclética possível: pop/rock/reggae/hip-hop/funk).

No Theatro Municipal, no Rio de Janeiro, estavam também Cauby Peixoto, Ângela Maria, Agnaldo Timóteo, talvez os últimos representantes da música romântica do Brasil. Arlindo Cruz e Alcione também levaram seus prêmios em um evento que homenageou… João Bosco. Não é o mundo de Criolo. Para não decretá-lo como único intruso descabido em meio a tantos “guardiões” da música brasileira, o não muito conhecido Hebert Lucena venceu na categoria regional de Melhor Cantor e Melhor Álbum.

O único cara do Grajaú abençoado por Chico Buarque também está com as malas prontas para sua primeira grande turnê internacional. Depois de cantar em Nova York e Buenos Aires, Criolo faz shows na Inglaterra, França, Itália e Dinamarca. Criolo é o rei do mundo.

Nesse contexto, da sofisticação do rap e da consagração do artista, há dois pontos interessantes que palpitam com mais força. Musicalmente, por que Criolo chegou onde chegou? E, outro, por que o rap não funciona mais – ou não só – como música de protesto?

Daniel Caron/Gazeta do Povo

A história do rapper é (ou foi) dura. Em uma entrevista à revista Trip em setembro do ano passado, Criolo (Kleber Cavalcante Gomes, nascido a 24 de outubro de 1975), revelou detalhes da sua infância e as dificuldades da vida da sua família.

“(…) sua mãe, a dona Vilani, era só uma criança correndo com um pedaço de carne crua embrulhado no jornal do dia anterior. Ela tinha que chegar logo em casa, antes que o sangue manchasse todas as letras no papel e nada mais fosse legível. Era como ela matava sua fome por leitura e completava, autodidata, sua alfabetização. Já que não havia escola, nem livros, nem dinheiro… e a embalagem era a única coisa com palavras impressas disponível na região carente do Ceará. Escritos que ela decifrava a duras penas, comparando com seu nome (tudo o que sabia escrever quando seu pai morreu) e deduzindo as demais letras, depois sílabas e palavras. Hoje, ao escutar sua mãe descrevendo essa cena, Kleber tem os olhos empoçados.”

Um grande trunfo de Criolo foi ter acrescido de maneira não panfletária essa rica história em sua arte.

Foi no Lupaluna deste ano que vi o rapper pela primeira vez no palco. Em ação, ele é um misto de urgência e devoção. Seus gestos largos contrastam com a voz, doce e afinadíssima. Criolo é um sujeito que emana assertividade, passa confiança indubitável e cria uma espécie de messianismo instantâneo.

Daniel Caron/Gazeta do Povo

Afora a figura quase mítica, sua música é rica e cheia de reentrâncias. O que predomina em Nó na Orelha é sim o hip-hop, em “Subirusdoistiozin”, “Mariô”, “Grajauex”, “Lion Man”. Mas há também o afrobeat de “Bogotá”, o soul moderno de “Não Existe Amor em SP”, e até bolero, em “Freguês da Meia Noite”, que muito bem poderia ser uma música presente em Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, fantástico disco de Otto.

Criolo também foi perspicaz ao expandir a temática de suas letras. Elas são engajadas a um nível que não incomoda quem não quer saber dos eternos problemas sociais do país – talvez muitos dos que estejam presentes no Prêmio de Música Brasileira, inclusive. Ele optou por se camuflar e até mesmo desviar de seu caminho histórico para ser quem é. Foi sua escolha de Sofia.

Convenhamos também que a música de protesto no Brasil está em baixa. Se nos anos 60 e 70 Chico e Caetano eram os defensores populares oficiais, nos 80 havia o rock para representar a inquietação juvenil e nos anos 90 uma boa parcela de rap e hip hop se prestava a isso.

Hoje parece falta gente para fazer música com conteúdo rebelde, de alguma forma. Como bem lembrou um colega, a maior banda do Brasil dos últimos 15 anos jamais escreveu uma letra com uma pitada de discurso político/social. Ou você se lembra de alguma letra do Los Hermanos que não fale sobre relacionamentos ou histórias sobre relacionamentos?

Talvez isso signifique, mais do que falta de música de protesto, ausência de motivo ou de vontade para se protestar. Mas Criolo passou imune a tudo isso e trocou inteligentemente parte de sua rebeldia intrínseca por filosofia urbana. O maior exemplo é “Não Existe Amor em SP”, que virou até bordão.

Por mais que sempre relembre seus amigos não famosos do Grajaú, valorize sua história repleta de pedras no caminho, Criolo precisou se reformular para chegar onde está.

O mais cruel: são 23 anos de carreira para ganhar dois importantes prêmios na categoria, adivinha, Revelação. Criolo, bem-vindo ao Brasil.

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