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(Felipe Mayerle / Gazeta do Povo)

(Felipe Mayerle / Gazeta do Povo)

 

Gomes nascera talhado para o cargo. Metódico feito um relógio suíço, preenchia todos os requisitos de um exemplar funcionário de repartição. Inclusive na forma de  tratamento. Jamais fora chamado pelo nome de batismo no trabalho – o qual, aliás, ninguém por ali sabia qual realmente era. Nem mesmo quando ingressou na carreira pública, ainda jovem, quase imberbe. Nunca o chamaram pelo primeiro nome. Sempre pela alcunha de família.

O estranho não é Gomes ter sido tratado de Gomes a vida adulta inteira. O estranho é Gomes ter sido chamado de Gomes na infância. Ao contrário do senso comum entre as  crianças, ele não tinha apelido na escola. À parte o peso um pouco mais reforçado que mantém desde pequeno, aos 12, 13 anos, faixa em que os apelidos brotam  entre a gurizada, não era o Bolota, o Gordinho ou o Pança. Gomes já era o Gomes, justamente por não se destacar em nada além dos estudos. O que só reforçava o caminho de um destino já traçado: viera ao mundo com os talentos dos grandes burocratas, o de se orgulhar do crachá com seu nome e o de carimbar papeis incessantemente.

Muito desse tratamento distante vinha do próprio comportamento com os colegas de repartição. Reservado até o último fio de cabelo, Gomes falava estritamente de assuntos de  trabalho. Seus diálogos se limitavam a protocolos, fichas, prazos, petições, arquivos. Definitivamente, não era dado a intimidades. Muito menos a conversas  banais, fosse sobre a rodada do futebol, fosse sobre a novela das nove.

Mas algo diferente vinha acontecendo com Gomes nos últimos dias. A começar pelas escapadelas durante o expediente. Eram rápidas, coisa de minutos. Mas para quem nunca falhava no trabalho, eram de se levantar suspeitas.

E elas logo se confirmaram. Gomes, o sujeito mais solitário do  pedaço, o cara que não falava com ninguém, estava com o coração preenchido.

Um fim de tarde de sexta-feira, entra uma loira de meia-idade, de vestido e salto-alto, cuja fragrância do perfume chegara ao balcão da repartição uns cinco segundos antes  da própria mulher. Ela se dirigiu à mesa onde nosso personagem se esconde diariamente, sempre compenetrado atrás de uma pilha de pastas milimetricamente empilhadas, e disse em bom tom:  “Agora chega de trabalhar. Nós vamos ao cinema, Gominho fofinho!”. Para seu próprio bem, Gomes deixara de ser Gomes.

 

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