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Seu Amauri, Paulo e Eric Clapton
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Mais do que os bastidores do rock, Clapton narra a luta contra o álcool em sua autobiografia

No último final de semana revi um dos grandes sujeitos que conheci no meu trabalho como jornalista. Revi, mas dei uma de bicho do mato. Fiquei sem jeito de ir cumprimentá-lo, já que ele estava rodeado de amigos em um bate-papo animado na Boca Maldita. Mesmo assim, só de vê-lo bem, já me valeu o resto do dia de um plantão longo e modorrento de um sábado sem notícias aqui na redação.

Antes que se pense que a pessoa citada é famosa por estar tão rodeada de amizades, aí vai um porém. Seu Amauri é um homem anônimo. Completamente anônimo. Um alcoólico anônimo, para ser mais exato.

Conheci seu Amauri nas entrevistas para a matéria Só por hoje, uma das reportagens de que mais me orgulho de ter escrito. Ele é um dos fundadores dos Alcoólicos Anônimos (AA) no Paraná. Participou da primeira reunião no estado há 40 anos, quando tinha aproximadamente a minha idade, por volta dos 30, e não conseguia descer a escada de casa para trabalhar sem antes tomar um copo americano cheio de cachaça pela manhã.

Desde então, nunca mais bebeu. De vício, este senhor de 71 anos manteve só um, o qual não faz questão nenhuma de se livrar: é doente pelo Atlético Paranaense, para o desalento deste coxa branca irremediável que cá escreve. Coisas da vida.

Ter contato com a história de seu Amauri e de todos os outros alcoólicos anônimos que entrevistei teve um peso em mim. Ao participar das reuniões do AA para a reportagem, tive a confirmação de uma coisa na qual sempre acreditei piamente: de que o homem também pode evoluir sem o auxílio da religião ou da ciência, apenas por si mesmo, pela força de vontade.

Não estou aqui desmerecendo a fé, que respeito e sei ser eficiente a quem nela crê – incluindo a maioria dos AAs. Nem a ciência, que tantos benefícios trouxe à humanidade. Estou apenas a dizer que a evolução não está somente nestas duas pedras e eu vi isso no AA. As pessoas podem sim evoluir apenas pela vontade de ser alguém melhor e de querer ajudar outras pessoas a também serem melhores. E os AAs são a prova incontestável disso.

Estou dizendo isso porque o que mais me chamou a atenção nas reuniões do AA é que as pessoas evocam o nome de Deus quando falam aos companheiros. Mas elas reconhecem que, mesmo com toda a ajuda que a fé lhes proporciona, estão sem beber há um dia, um mês ou uma década pela própria determinação. Acima de tudo pela determinação. E para mim, não há nada mais louvável do que se alcançar objetivos por méritos próprios.

Outro exemplo de recuperação que conheci nesta reportagem é o coordenador do AA, o Paulo. Um sujeito tão espirituoso que ao contar suas histórias dos tempos de bebedeira você ao mesmo tempo ri e chora. Ri das situações inusitadas pelas quais ele passava. E chora também de situações inusitadas, as quais ele nunca mais quer repetir e que se envergonha de ter feito sob o efeito do álcool. Falar com ele não é coisa de conversinha de minutos. É para sentar, prestar atenção e, principalmente, aprender.

Digo isso porque o Paulo é personagem de uma das histórias de vida mais bonitas que conheço. Quatro anos depois de ver seu casamento ruir por conta das constantes bebedeiras, ele não só se recuperou, como reconquistou a mulher e voltou a morar com a família. Casou-se novamente com a mesma esposa, a qual me apresentou nas comemorações dos 40 anos do AA no Centro de Convenções.

O Paulo com certeza é outro sujeito que gostei muito de conhecer a trabalho, no qual ele ainda tem colaborado. Volta e meia ligo para ele para pedir um personagem para as minhas reportagens ou para a de algum colega aqui da redação.

Vale lembrar que pelos preceitos do AA os membros não podem ser identificados em público. A intenção é não estigmatizar o doente alcoólico perante a sociedade. Por isso, não coloquei neste texto o sobrenome nem do Amauri e nem do Paulo. Mas existe sim um alcoólico anônimo conhecido – com o perdão da divergência. Trata-se do inglês Eric Clapton, o maior guitarrista do mundo se não houvesse existido um cara chamado Jimi Hendrix.

Calhou que na época da reportagem do AA eu estava lendo a autobiografia de Eric Clapton. Comprei o livro esperando ler grandes histórias dos bastidores do rock. E elas estavam lá. Mas não eram o carro-chefe.

No livro, Clapton vai muito além e se aprofunda em narrar sua luta particular para deixar o álcool. O que conseguiu já beirando os 50 e seguindo os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos.

Em quase todo o livro, Clapton relata como o álcool atrapalhou sua vida. Interferiu nos relacionamentos afetivos, na carreira e, principalmente, com o filho, Conor, que viria a morrer ainda criança ao cair da janela de um prédio.

A história que mais me tocou na biografia é de quando Clapton ia visitar o menino ainda bebê. Apesar da vontade de abraçar e brincar com o filho, o cantor não o fazia. Como nesses dias ele não bebia, evitava pegar a criança no colo de medo de que caísse por conta da tremedeira gerada pela abstinência.

O interessante no livro é que Clapton deixa muito claro que, apesar de todo o glamour e dinheiro que conquistou, só encontrou realmente o conceito da felicidade já sexagenário e abstêmio, quando formou família – ele é casado e tem três filhas pequenas. Ou seja, de junkie, viciado não só em álcool, mas em cocaína e heroína, Claptou passou a pai de família exemplar, sem o menor remorso.

Uma reviravolta gerada pelo AA na vida de um popstar. Tal e qual nas vidas dos anônimos Amauri e Paulo. Três grandes sujeitos que venceram pela determinação própria.

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