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Uma das representações de Maria Dorothéa. Não há um retrato oficial da musa.

Uma história que tinha quase tudo pra não ter a menor cara de romance. A começar pela época em que aconteceu. Aqui no Brasil, a maioria dos casamentos no século 18 era do tipo “arranjado”, e poucos se davam ao luxo de se unir ao verdadeiro amor. Outro detalhe era a diferença de idade entre os pombinhos em questão: quando eles se conheceram, ela tinha em torno de 14 e ele já beirava os quarenta. Não me sentiria tão desconfortável em relação a esse contraste se eu não me lembrasse que, naquele período, a sociedade era machista ao ponto de permitir que as meninas se casassem compulsoriamente a partir dos 10. E com homens bem mais velhos.

Mas o relacionamento entre Thomás Antônio Gonzaga e Maria Dorothea Joaquina de Seixas ganhou forma de novela ao ser imortalizado em uma das obras mais bonitas da literatura: Marília de Dirceu.

Maria, que era órfã de mãe desde os 8 anos, gostava muito visitar sua tia Antônia Claudia, que morava ao lado da Casa da Ouvidoria. Foi ali que Thomás viu a moça pela primeira vez entre as rosas, sendo picada por uma abelha. O poeta se apaixonou pela adolescente naquele momento e ofereceu a ela um lenço por cima do muro. A cena é narrada de maneira doce na lira XX do livro dedicado à moça.

Era uma frondosa
Roseira se abria
Um lindo botão.
Marília formosa
O pé lhe torcia
Com a branca mão.

Nas folhas viçosas
A abelha enraivada
O corpo escondeu.
Tocou-lhe Marília,
Na mão descuidada
A fera mordeu.

Apenas lhe morde,
Marília gritando,
C’o dedo fugiu.
Amor, que no bosque
Estava brincando,
Aos ais acudiu.

Mal viu a rotura,
E o sangue espargido,
Que a Deusa mostrou;
Risonho beijando
O dedo ofendido,
Assim lhe falou:

“Se tu por não tão pouco
“O pranto desatas,
“Ah! dá-me atenção;
“E como daquele,
“Que feres, e matas,
“Não tens compaixão?”

O cortejo de Thomás à Maria era assim: pura poesia, literalmente. Em uma de suas mais famosas obras, o autor deu à sua inspiradora o pseudônimo de Marília, deu a si mesmo o pseudônimo de Dirceu e deu ao seu trabalho o título Marília de Dirceu – até para deixar bem claro que a sua musa era bem diferente da musa do Bocage, outro poeta árcade que cantava outra Marília – só que em Portugal.

Nas liras, Dirceu falava da natureza, da beleza da sua amada e do quanto a queria. Como bem faziam os árcades, cantava o campo, lembrava da efemeridade da vida e chamava Marília para aproveitar com ele o dia presente, que logo não existiria mais.

Maria e Thomás namoraram, ficaram noivos, mas, após ser preso por estar em envolvido com a Inconfidência Mineira, ele foi mandado para Moçambique, bem longe da sua paixão. E eles nunca mais se viram.

Os dois corações partidos pelo exílio (e pela falta de um Skype) sofreram o castigo de um governo impiedoso e cruel. Como, naquela época, quem tivesse qualquer ligação com um inconfidente sofreria perseguição da coroa, Dorothéa foi enviada para viver na fazenda do pai, onde morou por 20 anos.

Lá em Moçambique, Thomás Gonzaga se casou com outra mulher (não vou julgar, não vou julgar, não vou julgar!) e viu impressa a primeira edição da obra que escreveu para uma das mais famosas musas da nossa literatura. Maria Dorothéa morreu aos 86 anos sem nunca ter se casado.

Pausa para lágrimas. 

Algum tempo depois, o escritor Joaquim Norberto de Souza e Silva disse ter encontrado em Ouro Preto, um manuscrito chamado Dirceu de Marília: um poema-resposta de Maria a Thomás. No prefácio do livro, Joaquim diz não se comprometer com a veracidade das páginas, mas escreve que “Apócrifas ou originais, completam elas a história dos amores e saudades desses amantes desgraçados que a poesia começou por celebrar e que os homens acabaram por imortalizar”. Como no original as iniciais de Maria não estão na ordem certa, a maioria dos historiadores descarta a hipótese que que ela tenha mesmo escrito a obra. Até onde se tem certeza, o único documento ainda existente com a letra da mineira é seu testamento.

A musa de Dirceu não teve filhos registrados, mas muita gente acredita que ela tenha dado à luz a uma criança e a abandonado.  Uma das pistas que levam a essa suspeita é uma nota de falecimento no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1893, que diz: “Faleceu o major Pedro Queiroga, neto de Marília de Dirceu, vítima de lesão cardíaca.”. Mas também não há nenhuma certeza quanto a isso.

Referências:
Cadastro: Maria Dorothea Joaquina de Seixas
Marília de Dirceu
Entrevista com Alexandre Sanchez Ibanez, autor de Maria Dorothea, a musa revelada
Revista de História

 

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