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O jornalismo de Clarice Lispector
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Clarice Lispector foi jornalista. E das boas. A propósito, grande parte de seus trabalhos para os jornais precedeu sua carreira como escritora e fortaleceu a escrita impecável que sustentaria seu sucesso para sempre.

A autora de A paixão segundo GH procurou a imprensa para divulgar sua produção literária quando não tinha sequer 20 anos de idade. Abertas as portas do jornalismo, Clarice entrou. E ficou por ali.

Passou por inúmeras publicações brasileiras, como o jornal A Noite, que era um embrião do O Globo; O Diário da Noite, de Assis Chateubriand; e as revistas Manchete e Jóia.

Imagino que o portfólio da escritora devesse ser bem robusto. Seu trabalho como jornalista somou em torno de 5 mil textos e mais de 100 entrevistas. As crônicas, os contos, as colunas dirigidas às mulheres e as entrevistas que fez com gente de perfis diversos, como Rubem Braga, Tom Jobim e Elke Maravilha, tinham sempre aquele traço “claricesco” de revirar o leitor por dentro, fazê-lo olhar para si e se entregar às verdades do mundo da maneira mais intensa possível com uma simples leitura.

As entrevistas demonstravam um notável grau de proximidade com as celebridades, as crônicas revelavam um conhecimento profundo da alma humana. E de tanto cutucar sensações com palavras, acabava pescando aquilo que todo mundo sentia e não conseguia explicar. Resultado: uma porção de aforismos libertadores , como os que enfeitam toda a obra de Lispector – e o Facebook de muita gente.

Uma coleção da Editora Rocco com obras da escritora tem uma edição com algumas destas produções jornalísticas. Clarice na cabeceira – jornalismo conta com muitas de suas crônicas, entrevistas e conselhos a leitoras.

Entre os textos que mais me chamaram a atenção estão os da série Cartas para emengardo, publicada no periódico literário Dom Casmurro, um dos mais importantes em circulação durante a ditadura Vargas. As produções narradas por uma mulher chamada Idalina e dirigidas a um homem chamado Emengardo questionam a vida, a paixão e o sagrado. Clarice parte da ingenuidade para explicar aspectos confusos dentro de nós, que só uma perspectiva profundamente analítica poderia esclarecer. Os textos são pessimistas, tensos e perturbadores. Coisa de Clarice mesmo.

Outro trabalho interessante foi uma matéria de 1941 publicada na revista A Época, em que a escritora entrevista vári@s estudantes universitári@s a partir da seguinte enquete: Deve a mulher trabalhar? A repórter ouviu meninos e meninas e encontrou quem dissesse que sim e quem dissesse que não. Compreender, pela reportagem, a transição pela qual as mulheres passavam na época é muito bacana. E inusitado.

Um único ponto fraco

Por falar em mulheres, a única coisa da qual eu não gostei foi da forma como Clarice fortaleceu padrões de moral, beleza e comportamento impostos a elas em algumas de suas colunas. Isso aconteceu, por exemplo, em um texto publicado no Correio da Manhã, em fevereiro de 1960. Veja um trecho:

“Manias que enfeiam – Existem muitas, e muitas também são as mulheres que as cultivam, sem pensar que com isso estão se prejudicando. Por exemplo, a mania de estar sempre comendo alguma coisa, como chocolate, um caramelo, um sorvete, como se vivesse eternamente com fome. Além de extremamente deselegante, dá a impressão de que não come o bastante em casa. Os homens detestam isso. Sem falar nas gordurinhas supérfluas que essa gulodice constante faz aparecer”.

Mas, claro, convenhamos que não dá para ignorar todas as barreiras machistas que a escritora rompeu na vida e na própria literatura para chegar aonde chegou.  Ela foi, sim, uma mulher à frente do seu tempo. Além disso, não podemos negar que os anos eram outros. E não é bom julgar um trabalho de outros dias com os olhos embrulhados em tudo o que conhecemos agora.  Aliás, o livro organizado pela pesquisadora Aparecida Maria Nunes nos dá uma boa visão do passado. A obra não é apenas uma viagem pelas veredas jornalísticas de Clarice. É também um passaporte para quem quer conhecer um pouco mais da história do jornalismo brasileiro e a ótica dos jornais antigos sobre aquela época.

Clarice na cabeceira – jornalismo, 2012
Clarice Lispector
Editora Rocco
239 páginas

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