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Adeus, Dona Edith do Prato –  tem samba no céu!
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ANTÔNIO MARIANO JÚNIOR/ARQUIVO PESSOAL
A TRAJETÓRIA DA SAMBISTA, CANTORA E PERCUSSIONISTA EDITH DO PRATO, QUE MORREU AOS 94 ANOS, NA ÚLTIMA QUINTA-FEIRA, SE ENTRELAÇA COM A HISTÓRIA MUSICAL DO RECÔNCAVO BAIANO: “QUANDO EU ESTAVA NO SAMBA O PESSOAL SÓ FALTAVA ENDOIDECER”

E pensar que dias atrás tive o privilégio de ser recebido na casa dela, em Santo Amaro da Purificação. Bahia!! Estava vestida de branco, bonita, serena, sorriso de muitas afeiçoes. Roberto Mendes, guardião santoamarense, me levou àquela senhora com graças tantas nas mãos e voz. Dona Edith do Prato!

Agora ela faz festa e samba no céu. Soube de sua morte na sexta-feira , noite espessa por demais, através de um amigo. Nó na garganta…

A sambista e percussionista faleceu na última quinta-feira (dia 8), às 22h30, de parada cardíaca. Estava internada na UTI do Hospital Português, em Salvador, desde o dia 18 de dezembro – quando completou 94 anos de idade – por conta de um Acidente Vascular Cerebral. O corpo foi sepultado na sexta-feira (dia 9) no cemitério de Santo Amaro, por volta das 17 horas.

Ninho Nascimento, neto de criação, por telefone, relatou que, no sepultamento, Caetano Veloso rasgou o silêncio devocional e coletivo para cantar, à capela, “Viola meu bem”. A canção está no clássico e experimental “Araçá Azul” (1972), de Caetano, em que ela canta e raspa a borda do prato com uma faca.

No álbum, Edith Oliveira Nogueira, nome de batismo, também participa de “Sugar cane fields forever”. Deu-se a projeção nacional da matriarca do samba baiano, cuja trajetória escorreu nos sambas e rodas do Recôncavo Baiano. Aliás, Dona Edith foi mãe de leite de Caetano. Mantinha íntimos laços com os Veloso: Nicinha, irmã biológica dela, foi adotada pelo Zeca e Canô.

Senhora do samba também posicionou-se emem “Flama” (1988), disco de estréia do cantor, compositor e pesquisador Roberto Mendes. Foi com ele que pisou pela primeira vez num palco, em 1972, em Feira de Santa. Foi com ele que pisou a última vez num palco, em 2006, no Sesc Pompéia, em São Paulo. Como são as coisas da vida, né?

Em 2003, pelo selo Quitanda (distribuição da Biscoito Fino), de Maria Bethânia, Dona Edith do Prato lançou nacionalmente o álbum, “Vozes da Purificação”. Não mais depois. Rendeu um DVD, sob tutela do Itaú Cultural . A única vez que vi Dona Edith do Prato em cena foi em Salvador, ao lado de Bethânia, no PercPan, Festival Mundial de Percussão. Teatro Castro Alves, 1999.

ANTÔNIO MARIANO JÚNIOR/ARQUIVO PESSOAL
UM DOS ÚLTIMOS REGISTROS FOTOGRÁFICOS DE DONA EDITH, EM SANTO AMARO DA PURIFICAÇÃO, TERRA NATAL: SERENA, SORRIDENTE E MÍTICA SENHORA QUE SE PROJETOU NACIONALMENTE EM “ARAÇÁ AZUL” (1972), DE CAETANO VELOSO

Luzes da ribalta, mata ciliar, a última entrevista – Ligo para Roberto Mendes. Não consigo me expressar direito. Ele diz frases fortes: “O pilar tombou, ruiu. Minha dor é essa! Edith funcionava como mata ciliar e, por isso, não vai morrer nunca. Ela deixou muitas heranças musicais. Eu perco uma referência, um elo de muitas fontes”.

Dona Edith teve dois filhos (um deles falecido) do primeiro casamento – foram dois matrimônios, duas netas de sangue. A Ninho Nascimento, neto do coração, pediu: quando morresse, o carro de som – som das interioridades – anunciaria o fato com a música “Luzes da Ribalta” (Chaplin, versão de Antônio Almeida e Braguinha) que ela ouvira, tempos atrás, na voz de José Augusto. É…

“Ela não tinha preconceitos, ouvia de tudo. Ela me confidenciou que queria essa música”, conta Ninho,também produtor cultural. E assim foi feito. Santo Amaro da Purificação, localizada a pouco mais de 70 quilômetros de Salvador, acordou com a triste notícia, que ecoou na Bahia, onde o Brasil nasceu.

A filha de Oxum, que incorporou o caboclo Sultão das Matas até os 90 anos, não está mais entre nós. Deus do céu – quem pode mais? – a levou.

Fui – de acordo com Ninho Nascimento – o último jornalista a entrevistar e fotografá-la (uma exposição com acervos de datas várias será inaugurada em maio, em local a ser definido).

Foi um bate papo regado a gostosas gargalhadas daquela doce senhora com vocação festeira, de vida tocada ao ritmo do samba. Vi e ouvi tocando prato para mim. Chorei…

SANTO AMARO DA PURIFICAÇÃO, FINAL DE TARDE DO DIA 15 DE DEZEMBRO DE 2008.

ANTÔNIO MARIANO JÚNIOR/ARQUIVO PESSOAL
O CANTOR, COMPOSITOR E PESQUISADOR ROBERTO MENDES COM A GRANDE SENHORA DO RITMO: “EDITH FUNCIONAVA COMO MATA CILIAR, EU PERCO UMA REFERÊNCIA, UM ELO DE MUITAS FONTES”

Roberto Mendes entra na casa falando alto e dizendo engraçados palavrões. Sentadinha, assistindo a um programa de televisão, Dona Edith muda o semblante. A alegria é visível. Ele me apresenta. Dou um beijo nela, falo da honra de lá estar. Roberto continua falando palavrões e dona Edith solta a primeira de uma série de gargalhadas.

– Onde você achou esse aí?
– No meio da rua, respondo

Mais risadas.

Sem pressa: Dona Edith do Prato se recupera de um AVC. Tem um pouco de dificuldade para se expressar.

Dona Edith, a senhora ainda continua tocando prato?

Se eu continuo? Às vezes… Ah, eu já toquei muito mesmo. Minha vida sempre foi tocar samba. Sambei quando dava, agora de vez em quando…

A senhora começou no samba desde garota?

Sim. Onde tinha samba, eu pegava o prato e a faca e mandava brasa. Eu mesma comecei a fazer isso, ninguém me ensinou. Não precisa sem prato bom, mas tem prato que não presta. Tem que ser prato de louça…

Roberto lembra que Dona Edith começou tocando numa cuia de queijo. Numa entrevista concedida a mim, em 2003, Dona Edith disse que era sempre chamada para festas, aniversários, aonde havia samba: “Eu ia e ficava toda feliz, mas ficava compenetrada para tocar o prato e sair um ritmo bom”.

O pai da senhora a deixava sair para tocar prato quando era menina?

Ele gostava, achava muito engraçado. Ele dizia: “Essa menina é maluquinha” (risos). Eu era chamada e ia e todas as pessoas me respeitavam.

Nas rodas de samba se namorava muito?

(Gargalhada) Agora eu não sei o que dizer…

Reprodução
CAPA DE “VOZES DA PURIFICAÇÃO”, ÚNICO DISCO LANÇADO EM 2003 ATRAVÉS DO SELO DE MARIA BETHÂNIA: SAMBA DE RODA COM JEITO TODO PARTICULAR DE QUEM ERA CONSIDERADA UM “CARTÃO MUSICAL” DA BAHIA

Roberto intercede: Diga que isso é da intimidade, Edith (risos). Olha, se namorava muito sim. Era muito bonito. O samba é uma coisa de sedução. A Edith é uma mulher de muita sedução, é uma típica mulher do recôncavo. E o recôncavo tem muita emoção porque o samba de roda é feito com muito carinho. Por isso Edith é conhecida como a diva da chula do recôncavo. Ela canta o samba, ela grita a chula com muito prazer. Edith não fazia isso pra aparecer em televisão, não fazia pra gravar disco: fazia apenas pelo samba. É impressionante como uma mulher se dá bem com um prato. Edith é como se fosse minha mãe.

O que o samba lhe dá, Dona Edith?

Prazer. Adoro samba, minha festa é o samba.

Deixo o gravador numa mesinha e a conversa flui melhor. Elza, irmã de Edith, mostra o presépio com um anjinho batendo as asas. Dona Edith parece orgulhosa do mimo que ganhou.

Numa parede,tela imensa do artista plástico José Raimundo de Araújo, em que as tintas mostram a sambista com seu instrumento. Noutra parede, duas fotos: uma de Caetano Veloso e outra de Maria Bethânia. Roberto vai iluminando o sol já fraquejando..

O que o Roberto Mendes representa para a senhora?

É um grande amigo. Gosto muito dele, acho engraçado ele falando palavrão.

– Eu sai à minha mãe! Minha mãe xingava muito, responde Roberto

– A mãe dele era um caso sério. Não dava uma palavra que não fosse xingamento.

– Eu adoro xingar. Posso até rezar, mas gosto mais de xingar.

Dona Edith solta outra gargalhada e responde na lata: “Eu gosto mais de sambar!

O Hermínio Bello de Carvalho diz que a senhora é um cartão musical da Bahia, que tal?

Eu gostei muito. Eu gosto de tudo o que me falam, meu filho. Graças Deus.

Reprodução
DVD , COM CHANCELA DO ITAÚ CULTURAL MOSTRA , PRINCIPALMENTE, O COTIDIANO, RELIGIOSIDADE E HISTÓRIAS DELICIOSAS DE EDITH OLIVEIRA NOGUEIRA, NOME DE BATISMO

E a história que Caetano levou a senhora para um show e um segurança queria lhe tirar o prato e faca por medo? (Aconteceu na época da ditadura militar)

(risada) Caetano me chamou para uma festa. O rapaz não sabia quem era eu e ficou escabreado. Depois que Caetano disse quem eu era e o que estava fazendo o prato e a faca ficou tudo certo. Aí, fui tocar e quando eu estava no samba o pessoal só faltava endoidecer.

A senhora ensinou muita gente a raspar a faca no prato?

Eu recebi muitos pratos, mas entreguei muitos pratos pras pessoas …

Algum político lhe deu um prato um dia?

(risada) Aí é que está… Eu dava os pratos e acho que muita gente aprendeu a tocar e isso é que importa.

Peço para fazer fotos dela. Dona Edith quer se arrumar, prontamente atendida pela irmã, Elza. Digo que não precisa, já bonita. “Imagina”, responde. Mais bonita, abre o sorriso para as fotos.

Para minha surpresa um prato – dado por Naná Vasconcelos – lhe é entregue. Toca e toca. Vez em quando olha para mim. Eu, comovido. Agradeço pelo tempo que me concedeu: “Não me tomou tempo nenhum, meu filho”.


Eu me despeço. Beijo novamente as mãos da senhora do samba, dou um abraço. Tudo está guardado no coração.

Amarra o samba no céu, Dona Edith!

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