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Cruzando a linha
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Fazer jogos para as massas é como fazer cinema para as massas. Ou como fazer qualquer coisa que pretenda atingir a todos. Pega-se um grande tema, como a guerra (qualquer delas), insere-se um herói devidamente rigoroso com seus atos e uma história zé-ruela com inimigos bem definidos em um contexto de fácil digestão. O resultado, na maioria das vezes, é desastroso para quem tem mais do que ar entre as duas orelhas. Mesmo assim, com a blitz do politicamente correto sempre à espreita, no meio de um mar de produtos pensados para serem palatáveis, aparece, mesmo que poucas vezes, uma cena que provoca e tira o jogador de seu estado de letargia.

Em 2009, a fase “No Russians” de Modern Warfare 2 causou polêmica ao incitar que os jogadores matassem civis em um aeroporto. Disfarçado de terrorista, o jogador era instado a ajudar os comparsas a se infiltrar no local e, consequentemente, matar inocentes com rachadas de metralhadoras. Para não ser descoberto, também tinha que atirar contra policiais e fazer a cobertura dos criminosos. Havia um dilema moral claro. Até que ponto os jogos podem direcionar os jogadores a cometerem uma ação contra-intuitiva? Alguns países proibiram que o jogo fosse vendido se não retirasse a fase. “Não é relevante fazer o jogador se entreter sendo malvado (como em Grand Theft Auto) ou se ressentir de suas ações. O que é relevante é fazer o jogador sentir qualquer coisa que seja”, disse em entrevista recente Mohammad Alavi, um dos desenvolvedores.

O jogo mais recente a meter o dedo nesta zona de desconforto poucas vezes tocada é Spec Ops: The Line. Três soldados americanos são mandados para Dubai para resgatar alguns oficiais. No meio de um ambiente hostil, um dos três é capturado. A busca passa a ser pelo companheiro, que é encontrado em meio a um linchamento popular. Os dois soldados conseguem fazer o resgate, mas acabam mergulhados numa multidão de civis revoltada com a presença deles. O clima esquenta e o grupo não consegue escapar. Aparentemente só há uma maneira de sobreviver: matar os civis. “Nós queríamos que fosse uma situação bastante caótica”, explicou Walt Williams, escritor de Spec Ops, em entrevista ao site Kotaku.

Alguém poderia argumentar que cometer ilícitos é quase uma banalidade no mundo dos games. Sim, em muitos casos. Mas a pegada é diferente. Em Carmageddon ou no já citado GTA o jogador deve matar pedestres ou até traficar drogas como parte da missão. Desde o começo é proposto que, naquele mundo, o jogador interpretará ou comandará um criminoso. Os crimes são apenas tarefas que se amontoam como blocos de Tetris. E pela construção deste tipo de game é muito difícil imaginar que haja qualquer tipo de identificação com o personagem, é como assistir O Poderoso Chefão, por exemplo. Já em Modern Warfare 2 e Spec Ops a coisa muda. O jogador deve fazer o bem, buscar um objetivo moralmente aceitável e até honroso, como capturar um terrorista ou resgatar soldados em uma guerra justa. Cenas que firam esta confiança criada entre jogo e jogador causam desconforto, dúvida e stress. Deve-se matar civis para garantir a própria sobrevivência? Não, deve concordar a maioria dos leitores. Mas e se forem guerrilheiros disfarçados? O jogador deve escolher a dúvida de um crime, como a morte de inocentes, ou aceitar o fim no jogo, que representa a própria morte? Ou a pergunta maior: os produtores de Spec Ops deveriam ter colocado um dilema moral tão forte em um jogo que pretende atingir grandes massas?

Deixo as questões em aberto para o leitor.

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