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Uma música, um clipe e muita polêmica em Curitiba
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Um deu um soco daqui, outro mandou uma pernada dali, veio uma cruzada de direita, uma voadora, dedo no olho, cusparada, muitos golpes baixos. Agora que está todo mundo cansado da briga, eu dou uma canelada na polêmica detonada com o clipe do Alexandre França. E abaixo do meu texto vocês podem se divertir com o clipe e outras várias opiniões críticas:

Uma música, um clipe e muita polêmica em Curitiba

Reprodução
O clipe de França celebra a música de Curitiba

A música “A gente não tá de brincadeira”, de Alexandre França (veja a letra abaixo), começa com uma sanfona singela, humilde feito o inspirador do papa Francisco. Aos poucos, a balada avança, crescente. Lembra música de festival. Pega pela emoção. O clipe da canção foi lançado na semana passada. Seria só mais um entre os 30 surgidos neste ano em Curitiba, mas virou polêmica.

Em uma semana atingiu perto de 10 mil visitas no YouTube. Número razoável para uma canção e um clipe também razoáveis. No entanto, a centena de citações de artistas, entre os nominados na letra e os que aparecem em imagens do vídeo, detonaram debates pelo Facebook.

Umas críticas são mais consistentes. O músico Caio Marques, por exemplo, questionou o que ele viu como provincianismo e também a exigência de seriedade no fazer artístico. O jornalista Guilherme Voitch afirmou que o clipe escancara o que ele vê como uma geração autorreferencial e que faz um arte que não questiona. Outras opiniões (dos dois lados) são bobinhas, típicas de comentários de “revoltadinhos de internet” também autorreferentes, e muita “trolagem” sobre o compositor e debatedores.

O que me chamou a atenção foi que as pessoas a favor e contra se posicionaram a partir de algo que na prática não existe: a existência de uma suposta “cena musical” curitibana. É uma bobagem.

Se lermos a letra, é fácil perceber que ela não descreve uma “cena musical curitibana”. Nem fala só de músicos. O autor cita uma série de artistas que ele admira. Uma homenagem pessoal. Simples assim.

Os citados, embora colocados pelos debatedores na mesma “panela”, são representantes de muitas tendências e estilos. Haveria ligação entre os trabalhos do Wandula e do Lendário Chucrobillyman? Entre o Tatára e o Chico Mello? Comparar Léo Fressatto e Rosie and Me? Beijo AA Força e Los Hermanos? Grupo Rumo e ruido/mm? Você deve ter percebido que também são citados vários artistas não curitibanos, bandas que já acabaram, escritores, dramaturgos e grupos de teatro, mas, nas análises, todos entraram no pacote “cena musical curitibana”.

Assim como há muitas opiniões, umas mais relevantes e outras menos, Curitiba tem muitas cenas. Nenhum lugar tem uma só opinião ou uma “cena” só. Nem no clipe, nem aqui, nem na Coreia do Norte. E dentro de cada uma das diferentes “cenas” — o samba, o pop-rock, a MPB, o reggae, o heavy metal, o sertanejo, o hip hop etc — há várias outras “subcenas”. É impossível e impraticável empacotar tudo sob o mesmo rótulo.

Além dsso, as críticas de alguns dos “revoltadinhos de internet” devem ter sido motivadas pela presença de Uyara Torrente, que canta parte da música. Ela representa, para o bem e para o mal, A Banda Mais Bonita da Cidade. Os troladores, mesmo conhecendo só o clipe de “Oração”, dizem não gostar do trabalho da banda, que retrataria a tal da “cena curitibana”. Esquecem que não há nenhum curitibano de nascença na formação da ABMBC e que a banda é a que mais viaja e que menos depende de Curitiba hoje.

Outro detalhe: aposto que os troladores não conhecem os trabalhos de nem um quinto dos artistas citados pelo Alexandre França.

O clipe atingiu a todos tão emocionalmente que a razão ficou em segundo plano. Por isso, valeu.

A letra
A gente não tá de brincadeira

(Música e letra de Alexandre França)

Depois das duas grandes guerras do mundo
O Brasil deitou nos braços do fundo
Do fundo
Da bossa-nova, dos anos 70
O rock 80 e o rock 90
O rap e o funk, depois Los hermanos,
A indústria parou pra descansar
Num domingo de sol.
A internet nos fez um grande favor
De violar o foco do grande mentor
Mentor
Das gravadoras, daquela mídia
A mídia de massa, a falta de escolhas
Escolhas demais, mil territórios
No meu pensamento, esquizofrenia
Deleuze e Agambem num só.
E em Curitiba a arte fervia sem rastro
Silenciosamente os que estavam de fora deixaram
Um legado
Octavio Camargo e Chico Mello
O Beijo aa força e o grupo Fato,
E mais
André Abujamra, Maurício Pereira
Carlos Careqa, o grupo Rumo
Thadeu, Marcos Prado
Tatára e Cabelo
Arrigo, Itamar
E o Paulo Leminski a gritar
A gritar
E agora as raízes que foram deixadas de lado
Nos alimentam com sangue folclore compasso
Três por quatro
E as influências de um novo teatro
Do Transumano
Da Brasileira,
Alvim, Juliana
Diego e Salvatti
Gilson e Sartori,
Rodrigo e Linhares,
Chiris, Luiz Felipe
Glerm e Mattana
Larousse, Fressato, no meu violão
E a Mais Bonita cantando uma nova oração.
Quem poderá controlar
Confraria da Costa?
Quem poderá controlar
A Banda Gentileza?
Quem poderá controlar
O Lendário Chucrobilly Man?
Quem poderá controlar
João Francisco Paes?
Quem poderá controlar
Troy Rossilho?

A gente não tá de brincadeira

O nosso tempo vai além dos monumentos
O nosso tempo vai além dos movimentos
O nosso tempo vai além destes momentos
O nosso tempo vai além
De outros tempos.

Veja vídeo da canção que gerou o debate:

Citados em imagem no vídeo por ordem da aparição:
Paulo Leminski, Beijo AA Força, Itamar Assumpção, Solda, Careqa, Tatára, Mauricio Pereira, Thadeu Wojciechowski, Antonio Saraiva, Alice Ruiz, Andre Abujamra, Grupo Fato, Marcos Prado, Blindagem, Tangos e Tragédias, Claudete Pereira Jorge, Acruel, Mauricio Vogue, Espaço Outro, Pausa Companhia de Teatro, Companhia Silenciosa, Cia Brasileira, Roberto Alvim, Juliana Galdino, Diego Fortes, Fabio Salvatti, Gilson Fukushima, David Sartori, Rodrigo Augusto Ribeiro, Otávio Linhares, Chiris Gomes, Luiz Felipe Leprevost, Glerm, Marcio Mattana, Ana Larousse, Leo Fressato & A Banda Mais Bonita da Cidade, Wandulla, Giovanni Caruso e o Escambau, {Sí}monami, Confraria da Costa, Uh La La !, Vilma Ribeiro, Emerson Caruso, Grupo Molungo, Klezmorim, Fabio elias, Banda Gentileza, Michele Mara, Plexo Solar, Radiophonics Banda, O Lendário Chucrobillyman, Terra Sonora, Decompositores, Trem Fantasma, Felixbravo, Joao Francisco Paes, Banda Nuvens, Música de Ruiz, Octavio Camargo, Trombone de Frutas, Troy Rossilho, Descobrimento do Brasil, Naked Girls & Aeroplanes, ruido/mm, Thaïs Morell, Janaina Fellini, Copacabana Club, Anacrônica, Hilbilly Rawhide, Colorphonics, Punkake, Regra 4, Projeto Radar (Crocodilla, Negomundo, Jo Nunes, Lemoskine, Charme Chulo, Leo fressato), Sabonetes, Rosie & Me, Alexandre França, Thais Gullin & Leticia Sabatella, Alexandre Nero, Levante da Casinha, Garibaldis e Sacis, Rock’n Curitiba, Namorada Belga, Lemoskine, Trio Quintina, Humanish.

Algumas opiniões:

Caio Marques
Putz, vou falar. Não gostei da canção-manifesto do camarada sangue-bom Alexandre França. Não gostei desde o primeiro acorde, mas escutei até o final para ver se ouvia meu nome ou o nome da minha banda, não ouvi, mas não é por isso que não gostei (tá, um pouco é, mas todo mundo gosta de ouvir seu nome do púlpito. Quem não gosta?). Mas não gostei principalmente porque acho estranho falar de música curitibana deslocando-a da história da música brasileira. Somos brasileiros antes de sermos curitibanos, não somos assim tão diferentes, um pouco mais tímidos, mais broncos, talvez, mas não é regra. Todo mundo que compõe e produz, deixa seu rastro. Deixa sua marca, seja aqui, em Goiânia, na Dinamarca, em Sorocaba, Pernambuco, Glasgow, na Super-Bahia e, claro, no Rio e em São Paulo, onde vivem ou viveram alguns dos meus ídolos. Acho ótimo falar de seu pedaço, falar da sua gente e de sua experiência. Mas quando ouço música quero me emocionar, não quero ter aula. França, te admiro como pessoa e como artista. Gosto muito, mesmo, de várias canções e idéias tuas. Mas dessa não gostei. Tem outro motivo, e talvez por isso a minha ausência “preencha uma lacuna”: Em todas as vezes que estive em palcos precários dessa cidade e de outras, nos vinte e poucos anos em que venho escrevendo minha história com alguns companheiros, nas noites que fiquei enfurnado na lavanderia de casa buscando uma forma de dizer o que quero, nas vezes que subi nas mesas dos botecos gritando os versos de “Senhora Tentacão”, o maior samba de todos os tempos, em todas essas ocasiões eu estava, de fato, brincando.

Alexandre França
Alexandre França Caio Marques, você não entendeu a letra. Não separo Curitiba do resto do Brasil, pelo contrário, eu falo de pessoas que admiro que são de vários lugares do país – mas que influenciaram o momento pelo qual eu estou passando. André Abujamra, por exemplo, é de São Paulo, Antônio Saraiva (que influenciou, por exemplo, o Marcelo Lique, um Gênio na minha opinião, que deveria estar na letra), é do Rio de Janeiro, vários integrantes da banda mais bonita não são de Curitiba (um é de Paranavaí, outro do interior de São Paulo, etc). Esta crítica do meu amigo Caio, infelizmente, é uma bobagem SIM, Clelio Toffoli Jr, por que ela diz uma coisa que não está na letra que eu escrevi – EU NÃO SEPARO CURITIBA DO RESTO DO PAíS. Eu falo que EM Curitiba se está fazendo algo muito foda. E outra, o termo “a gente não tá de brincadeira” é uma BRINCADEIRA com o modo como o Leminski falava. Quem ouviu as entrevistas dele, sabe o modo como ele falava. É uma expressão popular, que guarda, de antemão, em sua raiz, a BRINCADEIRA da linguagem coloquial brasileira (você estudou letras e sabe destas coisas). Como diria Marcos Prados (que está na letra e nas imagens) “a gente faz brincadeira à serio”. Mas, pelo o que eu percebi no teor do seu comentário, tu levou a sério DEMAIS as citações da letra. Brinca comigo, caraio! Vamos falar, pelo menos em UMA música, que Curitiba é um lugar legal de se criar. Foda-se quem é citado ou não – o importante é o espirito que a letra traz! Grande abraço.

Rodrigo Barros Del Rei
sou citado na musica…(e me senti homenageado pelo França)…depois conversei com o Carlos Careqasobre a cancão…fiquei em duvida sobre a intenção da letra, se era abraçar para ser abraçado, ou apenas uma lista de gente que oAlexandre França curte numa brincadeira que parece treino de estilo…sempre achei que a autofagia era um traço diferenciador do carater curitibano, que torna as coisas mais estranhas e nos torna fazedores de uma música urbana única (mas não popular) no país. Sempre fiz as coisas de brincadeira, na jocosidade e no devorteio, e acredito que parte dessa nova geração tem o anseio das multidões que eu nunca tive…Gosto de algumas canção dessa turma, de outras não. Temo mais pela “teatralização” ( e isso sim, vem acontencendo) da musica daqui, do que do uso da emoção e do coleguismo como forma de divulgação de uma canção… E é só uma canção…e pra mim canção é gado…daonde veio essa tem mais um monte vindo…umas melhores, outras piores…

Phillip Gil França
Alguém lembra qual foi a última vez que as mentes criativas curitibanas ficaram “cutucadas”?

Quando foi a última vez que uma manifestação cultural curitibana causou tanta necessidade de questionamentos sobre posições, influências e perspectivas das pessoas que chacoalham cultura em Curitiba?

Quando foi a última vez que vcs pensaram no real e no almejado posicionamento do que produzem?

Ou, se não sentiram nada disso, pergunto: quando foi a última vez que um Curitibano levantou questões sobre uma cultura musical que pode, sim, ser chamada de curitibana?

Pois é, não deixem que seja a última vez.

Sem deixar de anotar que a crítica construtiva, como a do Caio Marques, é fundamental para o artista.

Grace Filipak Torres
Viva! Finalmente um bom debate sobre a produção musical da cidade. Também tô cansada de todo mundo achar tudo lindo o tempo todo, inclusive os jornalistas… tem muita mediocridade por aqui sim, como enfatizava Leminski, dizendo que “Curitiba é bem alimentada demais pra produzir arte”, ou algo muito parecido com isso. Como disse Rodrigo Barros Del Rei, gosto de algumas canções dessa turma e de outras não. e concordo com muito do que foi dito aqui, incluindo Caio Marques, Alexandre França, Flávio Jacobsen e outros ainda. Que bom poder convesar sobre isso tudo! E que fique a pulga atrás das nossas orelhas incomodandinho. Quem sabe assim um deslocamento saudável aconteça por aqui. Abraços!

Cassiano Fagundes
Sou curitibano, mas não exerço. É porque descobri algo que poucos sabem: do atual Bairro Alto a São Luís do Purunã, há uma emanação pantanosa intoxicante que faz os que a respiram por muito tempo perderem a capacidade de entender piadas. No estágio agudo dessa condição, o sujeito entende a piada, mas finge que não entendeu. Os índios sabiam disso (vai ver é por isso mesmo que convidaram os brancos a se fixarem logo aqui: para se vingarem da invasão, que era o que realmente estava acontecendo. O que eles não sabiam era que gente que não entende piada pode ser muito, mas muito, perigosa).

Desintoxicar-se dessa emanação nefasta é fácil. Tem-se que tirar a bunda mole do sofá e se manter longe dessa zona periodicamente, de preferência, semanalmente. Os artistas nisso tem uma vantagem: como seu ofício está, ao menos teoricamente, ligado ao nomadismo (especialmente os músicos), eles acabam de tempos em tempos respirando outros ares. Dessa forma, além de garantirem o entendimento das piadas, também conseguem cria-las.

As emanações pantanosas causam vários outros males, além da diminuição da capacidade de entendimento de piadas. Alienação e uma total incapacidade de compreender a noção de que há um mundo rico & diverso além da zona de influência é sintoma de intoxicação aguda. Um dos efeitos mais duradouros desses ares maléficos é fazer as pessoas que o respiram se sentirem confortáveis na citada zona de influência e não conseguirem perceber sua insalubridade.

Esse sítio não é o único onde tais emanações agem, mas há indícios de que respirar as de outros lugares também contaminados é bem menos nocivo do que ser afetado pelas mesmas por muito tempo.

Desde que fui apresentado a essa interessante teoria pelo saudoso Vicente Meneghetti JR, o China, procuro sempre que posso subir as montanhas de nossas serras e me banhar no mar de nosso litoral – lugares apontados como excelentes para se livrar provisoriamente do mal. Além disso, de tempos em tempos, vivo em outras paragens, e viajo, com ou sem minha guitarra nas costas.

Não entender piadas é um problema muito sério. Então, pé na estrada, turma!!!

Caio Marques
Como disse minha amada companheira Sonia Floriani: Tô concordando com todo mundo aqui! Mas ainda não consegui gostar da canção. Fico feliz que a maioria tenha entendido minha intenção. Fazer uma crítica não significa jogar contra, muito pelo contrário. Crítica é melhor que elogio. Fiz isso por que acho importante. E como disse a Margit Leisner, arte é livre. É um “Inutensílio”, como dizia o hoje campeão de citações Paulo Leminski, que não se preocupava em agradar ninguém. Arte não precisa e, na minha opinião, não deve agradar todo mundo.

Guilherme Voitch – em artigo crítico na Gazeta do Povo

Muitos adolescentes da periferia andam em grupos de bairro, torcidas organizadas e outras associações, por vezes violentas, em busca de aceitação social. O grupo, nesse caso, garante identidade, tornando visíveis rapazes e moças que não haviam encontrado seu lugar no mundo.

A cena de Curitiba é gordinha e bem-nutrida, mas faz basicamente a mesma coisa. O clipe manifesto de “Não Estamos para Brincadeira” só escancara o que essa geração realmente é: autorreferencial, culturalmente domesticada, dona de um discurso bom-moço que não incomoda ninguém, nem sua vó, nem sua sobrinha de 14 anos.

Toda “cena”, em todo lugar é, na verdade, um grande compadrio entre caras de banda, jornalistas culturais, donos de bares e meia dúzia de outros personagens mais ou menos ligados à produção cultural. O milagre acontece quando algum nome consegue emergir desse caldeirão de mediocridade pelo talento e se conectar com o mundo real, aquele distante do cenário hipster.

O que tem ocorrido em Curitiba é o oposto disso. Se criar exige certa dose de destruição – renegar os ídolos mortos, rebelar-se contra a média e o oficialesco – a cena atual quer é uma grande corrente pra frente em que cabe o Paulo Leminski (justo ele?), a Fundação Cultural de Curitiba e dono de bar no baixo São Francisco. Tudo embalado por aquele pop sem sal para se fazer de sensível na noite. A cena de Curitiba já tem um “manifesto”, mas não tem uma, sequer uma grande canção, uma grande letra, uma grande melodia capaz de lhe tirar de sua zona de conforto. O importante aqui é que os gênios carentes se sintam todos incluídos, abraçados, amados e quentinhos. O importante em Curitiba é não se desgarrar da manada.

Luiz Felipe Leprevost, também na Gazeta do Povo, em resposta ao artigo de Guilherme Voitch

É evidente que o jornalista da Gazeta do Povo Guilherme Voitch não conhece a cena musical da cidade em que vive. Não é de hoje que canções brilhantes, com capacidade de vigorar em qualquer antologia do melhor que há na música brasileira são compostas por esta gente, como ele diz, “periférica”. Aproprio-me do texto “A estética do Frio”, de Vitor Ramil, para afirmar que não somos periféricos, mas o centro de uma outra história. Voitch se incomoda que “caras de banda”, jornalistas culturais, donos de bares e meia dúzia de outros personagens estejam tentando com muita dedicação mudar um pensamento e uma prática tipicamente autofágica, de raiz certamente fascista que se apresenta como herança, para o gozo de alguns, e maldição, para muitos de nós os envolvidos que vêm metendo a mão na massa. O que ele prefere, que continuemos nos engalfinhando por aqui, querendo a morte artística do outro? Ele prefere que nos acomodemos, calemos a boca e aceitemos uma condição submissa e de inferioridade diante do que ele supõe seja a “realidade” que, parece ser sua opinião, está apenas na história daqueles que atingiram ou o sucesso ou a fama, ou os dois.

A criação de canções populares, por sua vez, não tem por obrigação atender tais exigências, sejam de mercado, sucesso ou fama. Antes de mais nada, ela é manifestação das culturas, surge da manutenção da expressão, crie identificação ou não, regional, para só então vir a se universalizar. A música folclórica é exemplo óbvio disso. Porém, mesmo o rock dos Stones, que entenderam lidar com matrizes do blues americano tradicional fosse caminho, e a bossa de João Gilberto, cuja fonte é o samba, segundo cansou de afirmar o próprio João, passaram por aí, pelo regionalismo. A ignorância do jornalista, de qualquer modo, primeiro o faz atacar a cena artística da cidade como um todo, depois, estrabicamente não o permite enxergar que muitos de Curitiba são nos dias que correm reconhecidos nacional e internacionalmente, na música, na literatura, no teatro, nas artes visuais, no cinema. Apenas para ilustrá-lo, rapidamente cito um exemplo apenas de cada (não que não haja muitos outros): Karol Conká, música; Cristovão Tezza, literatura; Companhia brasileira, teatro; Rimon Guimarães, artes visuais; Marcos Jorge, cinema. No caso específico da canção “A gente não tá de brincadeira” (e não “Não Estamos para Brincadeira”, como está no texto da Gazeta), fique claro se tratar de um ato poético celebrativo em homenagem ao que vem sendo feito por aqui.

O direito que França se arroga está, dadas as proporções, em intenção semelhante ao de Chico Buarque quando compõe Paratodos e apresenta sua genealogia pessoal da música brasileira. Ou mesmo de acordo com o que querem Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves com sua parceria “O samba é meu dom”. Tributo aos mestres, comunhão com os fazedores do agora.

Ainda, à guisa da contradição: qual geração musical incomodou avós e sobrinhas de 14 anos? Ao contrário, muito mais do que incomodar, a música desde Elvis, ou no Brasil a Tropicália (a mais transgressora em termos de costumes) sempre arrebatou as jovens meninas. E as avós nunca deixaram de adorar uma boa canção de relembranças de sua época de moças. Adoram até hoje, porque a canção popular se destaca na cultura brasileira, aquela acompanha esta na mesma velocidade, costurando por dentro do som a história de nosso país. Pode que incomode, como incomodaram no passado, isso sim, esquisitos patrulhadores como ele. Aliás, estas avós e adolescentes que o jornalista tenta usar como suas cúmplices sequer existem, não passam de projeções de seu próprio preconceito.

Voitch, em seu ato implicante, escreve como se tivesse bola de cristal capaz de enxergar histórias privadas e o efeito imediato que elas pudessem causar, como se a apreciação e digestão de qualquer obra culturalmente não dependesse, necessariamente, do tempo; e mais, como se não pudéssemos considerar, como escreveu Harold Bloom, mesmo Shakespeare um nosso contemporâneo – pois como se inscrevem as obras ao longo da História, senão com o eterno retorno de suas apreciações? Nas palavras do teórico e compositor Arthur Nestrovski: A música não é só para ser lida, mas as canções lidas, tanto quanto ouvidas, essas ficarão. Daí que a matéria de Voitch é só redutora e simplista. No mais, por que não deveríamos admirar e trazer para perto a experiência e o pensamento de Paulo Leminski, se ele nos ensinou tanto, se ele era sim um amante de Curitiba, se ele elevou o nome desta cidade, se sua luta foi explodir com toda a babaquice de nos considerarmos província? Se ele é, em última análise, um ótimo exemplo? E mais, tantas vezes injustiçado por visões demasiado semelhantes a esta do jornalista da Gazeta.

Diante do fato, a feitura da canção A gente não ta de brincadeira e toda a polêmica que gerou, a Quadra Cultural, os movimentos feitos na Casinha do Felix Bravo, o Pré-Carnaval do Largo da Ordem, para citar o mínimo, fica claro que, ao contrário do que perversamente o jornalista tenta fazer acreditar, a cena não está domesticada, tampouco é constituída por um “bom mocismo”, termo este emprestado pela mídia impressa de São Paulo ao se referir, na época, há dois ou três anos, a alguns nomes de lá, onde, possivelmente, segundo pensa Voitch, está, talvez, a “realidade”. Vai ver por isso diz que existe ao menos um milagre, que se daria “quando algum nome consegue emergir desse caldeirão de mediocridade pelo talento e se conectar com o mundo real”. Que mundo real será esse a que ele se refere? O da grande mídia? O dos contratos com gravadoras? Ir morar no “eixo” e ser não alguém bem nutrido por lá? Por que Curitiba não é real para este jornalista? Então o seu exercício profissional por aqui de anos e anos é apenas sua grande ilusão? Além disso, se Voitch deu-se ao trabalho de escrever sobre o cenário, que para ele é irrelevante, por que então se deu ao trabalho? Gostava ele será de se comparar ao menos com os medíocres, já que sua invisibilidade até então era das mais invisíveis, mesmo ele escrevendo no maior jornal do Paraná, enquanto que os artistas da cidade têm se virado muito bem, alternativamente construindo seus próprios espaços, que são, por excelência democráticos.

Justiça seja feita, nem todo jornalismo cultural da cidade age desse modo caranguejo que, ao atacar também os seus colegas de profissão, inevitavelmente ataca um dos melhores profissionais da área, também da Gazeta do Povo, Luiz Claudio Soares De Oliveira. E mesmo as posturas, nunca de um bom mocismo, mas ponderadas e justas, de Cristiano Castilho. Ou o tipo de abordagem francamente agitada e crítica, mas nunca ingênua, de Sandro Moser. Pois é, Voitch se incomoda que a cena local seja bem nutrida, talvez porque ele preferisse que todos por aqui fossem verdadeiros mendigos mortos de fome. Assim ele toma partido (será que inconscientemente?) de um certo tipo de preconceito que diante de episódios como o espancamento dos Garibaldis e Sacis pela polícia diz “é isso mesmo, bando de vagabundos que não tem mais o que fazer, vão trabalhar em vez de fazer baderna”, ou apoiando a minoria que gostaria de ver aniquilado o projeto da Quadra Cultural, capitaneado por Arlindo d´O Torto Bar.

Como escrevi em recente texto: é bastante óbvio que estamos lutando (e vencendo) contra uma invisibilidade histórica, com a qual a típica e elogiada autofagia (que tem este nome, mas no fundo é só ignorância mesmo) de alguns de nossa gente certamente contribuiu até a náusea, e que muito bem diagnosticou Jamil Snege em seu livro de crônicas Como ser invisível em Curitiba. Daí que, talvez de algum modo tortuoso, devêssemos agradecer Voitch e sua tentativa pública de puxar o tapete, assim ao menos sabemos bem contra que tipo de pensamento brigamos, o que nos dá mais forças para seguir ao alto e avante, com fé em nosso taco enquanto cena. Ao menos (por mais que sua intenção seja irônica – mas vale o signo) admite haver gênios por aqui. De todo modo, numa discussão entre protagonistas, vir à luz a fala coadjuvante deste jornalista mostra a carência dele (a mesma que quer responsabilizada naqueles que chama de gênios). A cena local, por sua vez (não só meu texto, como o espaço que obteve na Gazeta do Povo e os comentários sarcásticos de terceiros em sua página do Facebook), tem para com ele um ato de generosidade, pelo bem que, em sua fatalidade de destino, deseja a cena fazer por si mesma, e está fazendo. No mais, o que o jornalista chama de compadrio, eu chamo de comunhão.

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