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Guernica e Cesar Almeida
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Relativismo não é pluralismo. Confiar que tudo é relativo a algo é diferente de confiar que todas as hipóteses são verdadeiras. Guernica tem um problema essencial que corrói seus ossos e anula quase tudo o que poderia apresentar de positivo.

Simultaneamente capitalista e anti-capitalista, parece confiar no argumento contemporâneo de que a única possibilidade anti-capitalista real foram os socialismos e que estes foram absolutos fracassos, como se o capitalismo fosse um sucesso.

Ao mesmo tempo, seguindo o senso bem comum contemporâneo, parece crer que o anti-capitalismo adolescente é a única possibilidade de observação crítica do sistema econômico mundial: simultaneamente capitalista e anti-capitalista.

Confia mais do que deveria na oposição estanque entre dualidades: em cena um escritor simultaneamente alienado e consciente já que ao mesmo em que nega ser capitalista, renega o próprio capitalismo. Se é necessário negar ser capitalista é porque há um capitalismo a ser negado. Se se renega o sistema econômico que rege todas as relações sociais, renega-se o irrenegável.

A mesma simplificação se dá com o jornalista: mercenário que, como o próprio escritor, precisa ganhar dinheiro através do trabalho, custe o que custar. O fato é que Guernica não se deu conta de que as oposições que apresenta não são verdadeiras oposições, mas reiterações de uma ideologia que olha para sintomas como fossem causa.

Olha para o consumismo como fosse ele causa dos males sociais e não efeito. Causa e efeito do que? Guernica não toma uma posição, confia que as coisas se resolverão não com mudanças profundas de algum gênero, mas com algum tipo abstrato de conscientização.

Confia que problemas econômicos, culturais, religiosos, espirituais, amorosos e psicológicos se resolverão com uma mudança completa das células do nosso corpo, ou com o vestido verde da esperança.

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Ao esvaziar a questão da nacionalidade presente no texto original, equivale os planos individual e coletivo. O casal de velhos bascos, que no texto original vive alienadamente os opróbrios de um ataque bélico poderoso, torna-se apenas um belo jovem gay e Regina Vogue.

O casal basco que no texto original servira de metáfora simultânea da alienação e do sofrimento humanos, aqui se torna mera ilustração para a oposição entre o caráter do escritor e do jornalista.

Já alertei para os perigos, numa relação entre forma e conteúdo no espetáculo, da adesão pluralista a várias teorias simultaneamente, vejam a crítica a “Histórias Brincantes de Muitos Paizinhos” da Cia do Abração.

Lá e cá, claro, as coisas são bem diferentes. Lá a encenação pareceu desorganizada, apesar de não sê-lo. Cá parecia ingenuidade, apesar de sê-lo.

O pluralismo em Guernica corroía, portanto, não só o texto de adaptação mas as atuações. Diogo Biss e Renato Sbardelotto destoavam dos demais atores por sua clara influência da atuação televisiva, dando ênfase à expressão facial em detrimento do corpo e, mesmo, da voz.

Neste desequilíbrio de atuações, a força excessiva de Maurício Vogue acabava se estabelecendo com muita tranquilidade e o estereótipo do escritor se tornara borrado perdido em meio à ausência de nuances.

A fragilidade da atuação de Regina Vogue residia numa entonação de voz farsesca que, ao gritar e reclamar de sua imobilidade por estar presa nas pedras, era rebatida pela tentativa de seu companheiro de cena em ser charmoso a cada frase.

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Iria Braga, numa posição narrativa em que quase não contracenou, convencia-nos, com sua extrema beleza, de que tudo o que dizia era a mais pura verdade. Acreditamos sempre que os mais belos têm menor potencial para nos mentir e geralmente estamos errados.

E acredito que todo o pluralismo de seu discurso tenha convencido a platéia deslumbrada, como eu, com sua magnificência.

Vi em Guernica a experiência de Cesar Almeida enquanto encenador. Não é opção simplória a de dirigir três planos distintos acontecendo simultaneamente no palco. Mas vi também uma simplificação dos problemas do mundo que surge do ato irresponsável de não resistir ao senso comum. E ambas características são, infelizmente, relativas, mas eu, infelizmente, não sou pluralista.

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